Por Raimundo Neto *

Um fato: Em 2008, um homem foi encontrado morto no Rio de Janeiro e identificado pela polícia como João Paulo Cuenca. O homem é encontrado no esqueleto de um prédio abandonado na Lapa com uma certidão de nascimento que o identifica como João Paulo Cuenca. É o início de “A morte de João Paulo Cuenca”; é o gatilho para o começo de uma morte: uma identidade que começa a se questionada. O que vem a seguir é ficção.

João Paulo Cuenca é o escritor conhecido na TV, jornais e festas literárias, mas morreu. Alguém roubou seu nome, o que ele não era, e morreu. Um episódio vivido pelo escritor que o levou a pensar em ser outro. Realidade e ficção estão atadas pelas graças de pessoas que ajudam João Paulo a descobrir quem era o João Paulo morto, casado, com duas filhas, que vivia de migalhas e uma suposta loucura numa decadência etílica em algum canto esquecido do Rio de Janeiro, num prédio destroçado da Lapa.

No filme João é João. Todos os outros são eles próprios. Só há uma atriz interpretando uma mulher de um modo bonito e sofrido. Uma mulher que fareja, investiga, e espera. A maioria dos homens e mulheres que aparecem, e são eles mesmo(a)s, são engraçado(a)s de um modo trágico. João é sério, e divertido, o personagem. Porque não conheço o autor. Não o conhecia, na verdade, até aquele dia (01.10.2015). Após a exibição do filme, na Rua Augusta, Cuenca esteve do lado de fora da sala do cinema; observei-o durante alguns minutos. Ele responde a questionamentos entusiasmados (ou algo mais profundo e úmido), no entanto, não é o mesmo João Paulo da TV. É outro. Ele levanta. Abraça alguém sem entortar os braços e curvar a seriedade. Segue pela Augusta, cruza a Avenida Paulista, puxa o celular, fotografa o evento da chuva-Paulista-fechada, fala com a chuva, encarna um homem vivo, posta um coração no Instagram.

Continuo sem conhecer o Cuenca. O que sei dele é sobre o que ele se tornou como espetáculo. No filme, ele era outro. Mas o outro, o que morreu e que não era o escritor e, sim, uma falta presente que, do início ao fim, leva João Paulo a buscar o próprio nome, não existe mais. Sobre essa morte desconhecida, nem tão familiar (nem por isso impossível), João Paulo Cuenca percorre pedaços do Rio de Janeiro ensaiando uma performance futura de morrer-e-não-ser-encontrado-por-ninguém. Cuenca enfrenta um orelhão bombardeado pelo tempo no deserto de uma rua distante, digita os números de algum telefone conhecido; a voz o chama de filho, nomeia, e ele desiste; segue em busca da morte da própria identidade.

Observei o Cuenca ao final da exibição do filme. Queria ver de perto um homem que morreu pela primeira vez e seguiu escrevendo e filmando sobre ficcionar a própria morte. Quando eu estava longe, bem longe de São Paulo, eu falava sobre o Cuenca aos amigos. Agora, estou a (1…2…3…4…5…6…7 passos, Moça, um expresso!… ele é mais baixo do que eu imaginava e sério-divertido) sete passos de distância, rabiscando o que não sei se será publicado, e não pretendo entrar naquele papo de seu-filme-vale-a-pena. Queria apenas saber o que é perseguir para encontrar rumo, para despistar o medo de ser o mesmo o tempo inteiro. Queria saber se ele é mesmo capaz de renascer e superar desmoronamentos e entulhos diários do que se é, como o Rio de Janeiro.

No filme, alguém segue o personagem pelo Rio. A cada cena-reconstituição, informações novas sobre o homem morto que não é o autor, mas poderia ser. Cuenca investiga, questiona; ele caminha por pedaços mortos do Rio, que renascerão em breve, todos os dias; procura conhecidos que não conheciam tão bem assim o homem que não era ele. Cuenca investiga a morte do nome (da TV, das festas literárias, dos obas-obas-internacionais nos quais ele é o prato principal) e continua vivo, perseguido pela presença do homem morto e da mulher que sente falta.

O Rio está desmoronando. E há outro Rio erguendo-se, uma alma debochada com nome gringo, enquanto o corpo do antigo Rio, aquele dos mortos-que-roubam-até-nomes, vai desmoronando dia após dia. Cuenca, a cada pergunta, também desaba: o homem da escrita aclamada, das opiniões valiosas em feiras literárias e da TV, vai perdendo as referências que o fazem um tanto vivo.

Ana Claudia Cavalcanti é uma aparição em todas as cenas. A mulher que não entende a busca do homem vivo nem a perda do homem morto é uma presença que mastiga a ficção e cospe vida bruta.

No final, Cuenca já é outro, e a loucura de ter o fim espalhado pelo espaço desmoronado de si toma conta do presente.

Eu segui João Paulo Cuenca, o morto-vivo. Só queria ter certeza de que ele não está mesmo vivo, para chegar a uma destroçada aproximação de que o filme é uma pergunta: Como é que se morre uma segunda vez se a primeira foi uma mentira?

A resposta?

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A morte de J. P. Cuenca [filme]

Avaliação: _pena-01  [bom]

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Raimundo Neto é escritor

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