Há risco?

* Por Camille Apolinário Gavioli *

Uma noite, um encontro de amigas, um convite à escrita. Escrever o quê? Qual formato? Perche? Perche mi piace. Simples assim.

Num átimo, abriu-se um mar de possibilidades. Via as ondas se formando e, no meio da espuma branca, palavras, frases inteiras. Ilegíveis. Escrever o que quiser? De um lado, certa alegria com a liberdade. Usualmente, escrevo sob demanda de trabalho. De outro, um aperto, esse já velho conhecido, diante da página em branco.

O branco ficava ainda mais branco quando pensava na escrita e na publicação. Escrever até que pode ser, mas publicar para quê? O branco da página se misturava ao branco das ondas e tudo minguava na beira da praia, aos meus pés. Dias se passaram, e a cena se repetia.

Escrever vem do latim, scribere, e, no dicionário Michaelis, entre outros significados encontramos: ‘marcar com o estilo (ponteiro ou haste de metal), traçar uma linha, marcar, assinalar, gravar, marcar com cunho, desenhar, representar em caracteres, fazer letras, escrever’.

 Desenhar a cena com palavras fez a coisa mais interessante. Então, comecei a escrita dessa cena. Publicar? Continuava sem sentido. Talvez ao final deste escrito encontre algum, talvez.

Nas coisas que encantam e fazem desenhar com letras estão os poemas, as músicas. Os idiomas também. Escrever é write em inglês. Write, not right. Write, sim, right, não. Não é algo do certo, do direito. Sim, mas não. ‘Faça direito, será publicado!’. De novo, surge o branco, puro branco. Mar, ondas aos meus pés, outra vez. Palavrinha complicada essa: direito.

Saio do adjetivo e do advérbio. Ali, ficaria no branco, ondas, mar… Tomo o direito substantivo pela mão e seguimos rumo à fronteira entre o ilegal e o legal. Existem mais de dois lados! Da fronteira, vejo outros mundos. Quantas histórias a escrever!

A proposta não era fazer direito, right, mas write. Entendi. Então, do meu jeito, my style, avec mon stylo. Uma canção do Caetano toca no disco da minha cabeça.

“Falando amizade

Por toda cidade boa

Mil sonhos serão urdidos na cidade

Na escuridão, no vazio há amizade

A velha amizade

Esboça um país mais real

Um país mais divino

Masculino, feminino e plural”

Risco o papel, há risco, arrisco. Lembro Torquato Neto em seu poema, “Pessoal Intransferível”.

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. e sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.

Não sou poeta, e não me privo do deleite de passear com seus escritos que trago aqui. Esse, do Torquato, me trouxe inspiração para diante das ondas do mar, percebo agora, querer não apenas olhar o mar aos meus pés, mas entrar na água e mergulhar de cabeça. Ali pesquei frases e palavras. Deitei-me na areia molhada e deixei-as ao meu lado. Tudo seca ao sol. Recortei letras, juntei palavras, fiz frases. O branco continua, mas agora pintado e desenhado de preto.

*

Camille Apolinário Gavioli é psicanalista, mestre em Psicologia e Educação pela Feusp-SP. Mora em São Paulo, onde atende em consultório particular. Adora seu trabalho, sua família, seus amigos, viagens, literatura e artes.

Arte ilustrativa: Joseph Mallord William Turner

 

 

 

 

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