O amigo (editora Instante, 215 págs.), da norte-americana Sigrid Nunez, livro ganhador do National Book Award de 2018, é narrado por uma mulher solteira de meia-idade que perdeu o amigo que se suicidou. Escritora e professora de escrita criativa, ela escreve para lidar com o luto, uma espécie de diário em que reflete sobre literatura, a arte de escrever e o meio literário, além de relembrar o que aprendeu e viveu com o ex-professor e mentor.

Ela não esperava, no entanto, que o amigo lhe deixaria uma herança inusitada: Apolo, um dogue alemão gigantesco, idoso e traumatizado com a ausência do dono. Ao adotá-lo, passa a viver sob a ameaça de despejo, porque o prédio em que mora há mais de trinta anos não aceita cachorros. Enquanto os mais próximos temem que essa conjuntura a tenha mergulhado em uma depressão profunda, a mulher, cada vez mais isolada do mundo e obcecada com o bem-estar de Apolo, que já não dispõe de muito tempo de vida, recusa-se a se separar do novo amigo, pois vê nesse vínculo a única chance de redenção para ambos.

Sigrid Nunez (foto) é autora de outros seis romances e do livro de memórias Sempre Susan, sobre o tempo em que viveu com o namorado David Rieff e a mãe dele, a escritora Susan Sontag. Escreveu para conceituadas publicações, como The New York Times, The Wall Street JournalThe Paris Review, entre outras. Recebeu inúmeros prêmios por sua obra literária e lecionou em universidades norte-americanas renomadas. Nunez mora em Nova York. Este é seu primeiro livro publicado no Brasil. Leia trecho abaixo:

Parte 2

Na maior parte do tempo, ele me ignora. Poderia muito bem viver sozinho aqui. Faz contato visual às vezes, mas então desvia imediatamente o olhar. Seus grandes olhos castanhos são surpreendentemente humanos; eles me recordam os seus. Lembro-me de uma vez, quando tive que viajar, em que deixei meu gato com um namorado. Ele não gostava muito de gatos, mas depois me falou que foi bom ficar com ele pois, disse, Eu sentia sua falta, e tê-lo por perto era como ter uma parte de você comigo.

Ter seu cachorro por perto é como ter uma parte de você comigo.

A expressão dele não muda. É a expressão que imagino nos olhos de Greyfriars Bobby nos anos em que permaneceu deitado no túmulo do dono. E ainda não o vi abanar o rabo. (O rabo dele não foi cortado, apenas as orelhas — infelizmente, de maneira desigual, deixando uma menor que a outra. Ele também foi castrado.)

Ele sabe que não deve subir na cama.

Se ele subir nos móveis, disse a Esposa Três, tudo o que você tem que fazer é dizer Desça.

Desde que ele veio morar comigo, passa a maior parte do tempo na cama.

No primeiro dia, depois de farejar todo o apartamento — mas de um jeito apático, sem nenhum interesse ou curiosidade real —, subiu na cama e desabou.

O Desça morreu na minha garganta.

Esperei até que fosse a hora de dormir. Mais cedo, ele havia comido a ração e se permitido ser levado para passear, mas de novo sem parecer se importar ou notar o que acontecia lá fora. Nem mesmo a visão de outro cachorro o animava. (Ele, por sua vez, nunca deixa de chamar atenção. Vai demorar para se acostumar com isso, com a sensação de ser um espetáculo, com as fotografias constantes, com as interrupções frequentes: Quanto ele pesa? Quanto ele come? Você já tentou montar nele?)

Ele anda de cabeça baixa, como um animal de carga.

De volta para casa, foi direto para o quarto e se jogou na cama.

O esgotamento do luto foi o meu pensamento — pois estou convencida de que ele compreendeu isso. É mais esperto do que os outros cachorros. Sabe que você se foi para sempre. Sabe que nunca mais voltará para a casa estilo Brownstone.

Às vezes, deita-se esticado de frente para a parede.

Após uma semana, sinto-me mais como a carcereira do que como a cuidadora dele.

Na primeira noite, ao ouvir o nome dele, ergueu a cabeça quadrada, girou-a sobre o ombro e me olhou de lado. Quando me aproximei da cama, com a intenção de desalojá-lo, claro, ele fez o impensável: rosnou.

As pessoas expressaram espanto com o fato de eu não sentir medo. Não penso que ele possa fazer mais do que rosnar em uma próxima vez.

Não. Nunca pensei isso mesmo.

Mas pensei que um cachorro daquele tamanho na minha cama poderia fazer o estrago de um elefante em uma loja de cristais.

Não era bem verdade o que eu dissera à Esposa Três sobre nunca ter tido um cachorro. Mais de uma vez dividi a casa com uma pessoa que tinha um. Em uma ocasião, o cão era uma mistura de dogue alemão com pastor-alemão. Então eu estava um pouco familiarizada com cães, com cachorros grandes e com essa raça em particular. Estava ciente, claro, da paixão que a raça tem por nós, mesmo que eles não sejam tão apaixonados quanto Hachiko e sua raça. Alguém ignora que o cão é o epítome da devoção? Mas foi essa devoção a humanos, tão instintiva que é oferecida gratuitamente até
a pessoas indignas dela, que me fez preferir gatos. Quero um animal de estimação que possa se virar bem sem mim.

Era inteiramente verdade o que eu disse à Esposa Três sobre o tamanho do meu apartamento: cinquenta metros quadrados. Dois quartos quase iguais, uma cozinha compacta, um banheiro tão estreito que Apolo entra e sai dele como se estivesse em uma baia. No armário do quarto, guardo um colchão de ar que comprei há anos, quando minha irmã veio me visitar.

(Tradução: Carla Fortino)

 

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