* Por Alexandre Staut *

A escolha de Hilda Hilst como homenageada da Flip de 2018 levou-me para o começo de década de 1990, quando li pela primeira vez o seu nome, na coluna semanal do Caio Fernando Abreu n’O Estado de São Paulo. Quem era a mulher carismática e boca suja, que via discos voadores, criava mais de 70 cachorros, reclamava dos vizinhos e das dívidas de IPTU e escrevia de forma estranha?

Foi com curiosidade jornalística e disposição de aprendiz de escritor que descobri uma forma de chegar até ela. Na época, eu trabalhava como repórter no jornal A Cidade, de Pinhal (SP). A diretora, Maristela Tesseroli, havia trabalhado no jornal campineiro Correio Popular, em que Hilda mantinha uma coluna semanal de crônicas (engraçadíssimas, aliás).

Maristela me passou o telefone da Casa do Sol e fez um mapa improvisado de como chegar à chácara – onde hoje funciona o Instituto Hilda Hilst. A anotação apontava para a saída de Campinas, em direção a Jaguariúna. Veja bem, na época não havia Google, nem programas de GPS em telefones. Nem mesmo celular. A internet era coisa rara.

Com as poucas informações de que dispunha, passei a mão no telefone. Hilda atendeu, silenciosa. Apresentei-me, meio sem jeito, disse que gostaria de fazer uma entrevista para um trabalho da faculdade. Aproveitaria o bate-papo para uma matéria no jornal em que eu trabalhava como repórter-foca. Ela concordou em me receber. A visita foi marcada para a semana seguinte.

Peguei um ônibus Pinhal-São Paulo, e desci na estrada, pouco antes da entrada de Campinas, onde fica o bairro Shangrilá, nos arredores da Casa do Sol. A pé, tomei uma estada de terra que imaginava levar ao lugar. Estava com o mapa feito por Maristela e, depois de engolir bastante poeira, e andar uns bons dois quilômetros, percebi que não encontraria o portão de entrada da chácara, o mesmo que havia visto numa reportagem, uns meses antes.

Ali não havia orelhão. Perguntei então para pessoas que passavam sobre a escritora, certo de que tantas excentricidades fariam dela uma mulher popular do bairro rural. Ninguém parecia conhecê-la. Como já disse, ainda não estávamos informatizados, muito menos eu, que fui ter um telefone celular 15 anos depois. Resolvi voltar para a rodovia e esperar o próximo ônibus para Pinhal.

Com dor no coração, tomei o caminho de volta. Ao entrar em casa, telefonei para Hilda e me desculpei. Ela pareceu não se importar. Sugeriu uma nova data no mês seguinte.

Mas esse mês nunca chegou. Por uma série de fatores, nunca me encontraria fisicamente com Hilda Hilst. Mas também nunca deixei de ligar para a Casa do Sol, para algumas palavras com ela.

Hilda era uma artista que se escondia, mas clamava por ser desvendada. Até por isso talvez tenha se enfiado no meio do mato, na propriedade que herdou da família.

Acabei fazendo a entrevista por telefone e as ligações ficaram mais frequentes. A cada mês, fazia novo contato e a conversa durou mais ou menos três anos.

Algumas vezes, ela atendia e dizia que não podia falar. “Aqui está trovoando, o céu ia vomitar”, falou uma vez. Ela tinha medo de receber uma descarga elétrica pelo telefone. Havia dias em que eu ligava e a sua secretária falava: “Desculpa. Dona Hilda já começou a beber.” Então eu deixava a flama para o próximo telefonema.

Eu me divertia ao falar com a Hilda. Ela era bastante espontânea, xingava os vizinhos, dizia que eram um bando de porcos barulhentos, filhos da puta, falou uma vez que queria matá-los. Disse algumas vezes que tinha medo de pegar aids, mesmo na velhice. “Eu não, daqui para frente, só bato siririca. Morro de medo dessa doença do inferno”. Outras vezes, reclamava que ninguém a lia. E falávamos sobre seus personagens, principalmente da Cuzinho, de Cartas de um sedutor, e de Lory Lambe.

Pedia, sempre, que eu entrasse em contato com a jornalista Maria Luiza Mendes Furia, em quem parecia confiar. “É uma ótima profissional. Manda a sua reportagem para ela. Pede para ela publicar no Caderno 2, pede, querido.”

Cheguei a mandar o texto pelo correio, aos cuidados da Maria Luiza, mas nunca recebi resposta. Talvez nunca tenha chegado às suas mãos. A comunicação, na época, era complicada. Muitas vezes, uma carta demorava duas semanas para chegar ao destino.

Em seus telefonemas, ela também falava dos amigos que a haviam visitado nos dias anteriores, citava alguns que se reuniam ao redor de uma grande árvore, para fazer pedidos aos deuses.

Uns queriam uma carreira de sucesso, outros sexo, tinha até gente que pedia para ter uma voz sedosa. Depois, eu me tornei amigo do escritor Gil Veloso, ele próprio confirmaria a história. Ele foi amigo da Hilda e a visitou inúmeras vezes, na companhia do Caio Fernando Abreu e, depois, de Lygia Fagundes Telles, de quem foi secretário por diversos anos. “A voz bonita e máscula quem pediu certa vez foi o Caio. E não é que ele foi atendido”, me contou o Gil.

Teve um dia em que abri o jornal e, numa entrevista, ela falava dos muitos estudantes que a procuravam, por telefone, para entrevistas. “Muitos deles de sexualidade dúbia”, ela disse.

No começo dos anos 2000, cheguei a ligar algumas vezes, mas ela já parecia bastante debilitada. Não se lembrava dos telefonemas da década passada. Liguei para me despedir em 2002. Eu partia para uma longa temporada na França e ela desejou sorte. Disse que desejava que eu encontrasse Marlon Brando numa esquina de Paris. Depois, disse outra vez que, na era da aids, preferia se masturbar a fazer sexo. “Deus me livre”, falou, e caiu na risada. Também disse nesta ocasião que estava bebendo pouco álcool ou quase nada. E assim foi a despedida dos telefonemas.

Dois anos depois, na França, abri um site de notícias do Brasil e li sobre a sua morte. Pensei nos meus telefonemas… Mais tarde, comemorei, mas com uma ponta de raiva, o fato de Hilda ser finalmente mais compreendida, com a reedição dos seus livros. Isso não poderia ter acontecido enquanto estava viva?

Hoje, ao saber da sua escolha como homenageada da Flip 2018, foi como se pegasse o telefone e discasse o número da Casa do Sol, encontrando toda a complexidade e a beleza de Hilda, a pausa na fala, que indicava o trago no cigarro, a voz um tanto ressecada, o latido dos cachorros ao fundo.

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Alexandre Staut é escritor e edita a São Paulo Review

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