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Por Marta Amoroso *

Ficções em frei Timotheo de Castelnuovo

Passemos à crônica de um aldeamento do império, tal como nos é facultado acompanhar por meio de uma das mais expressivas coleções de cartas e relatórios do período, de autoria de um único missionário, f. Timótheo de Castelnovo, que se manteve a frente do aldeamento de São Pedro de Alcântara (Paraná) desde 1855 até a sua morte na sede da missão do Tibagi em 1895.

A narrativa missionária constitui um raro registro das ideias e práticas de um frade capuchinho ocupando o cargo de diretor em um aldeamento indígena. Dos manuscritos detém-se uma interpretação do papel da missão capuchinha junto aos índios que apresenta um novo viés ao enfoque do período apreendido dos registros ministeriais e da legislação indigenista.

Na interpretação do missionário os aldeamentos indígenas deveriam ser compreendidos em um quadro mais geral das políticas públicas de povoamento do país. Em tal contexto, a catequese dos índios não passaria de um pretexto do governo que visava outros objetivos que não os índios.

Dizia o missionário que os frades italianos eram colocados no sertão para cumprirem a função de estimular o colono nacional ou estrangeiro a se assentar e cultivar as terras devolutas do sertão ocupadas pelos índios. Anuindo com este entendimento do governo sobre a centralidade da assistência religiosa no povoamento do sertão, reforçava Frei Timotheo de Castelnovo: “O que afinal é um povo sem sacerdote?”.

Entretanto, firmava, restava uma compreensão sobre o lugar das populações indígenas nos planos de povoamento e consequentemente sobre a missão de catequese, já que a catequese dos índios parecia figurar como uma ação secundária das políticas voltadas para colonos nacionais e estrangeiros. Neste sentido, o programa de Catequese e Civilização do governo do Império, sob o qual atuava o missionário, figurava como um exemplo de dissimulação e falsidade da política secular.

Em São Pedro de Alcântara, a relação que o missionário estabeleceu com os Kaingang e Guarani era identifica por ele como sendo paternal, os índios eram considerados seus filhos e o missionário confirmava a reciprocidade do vínculo assinalando com alguma frequência que recebia dos Kaingang e Guarani o tratamento de Panderé e Cheramoin, relação paternal que propiciava ao missionário, por sua vez, refúgio das falsidades das sociedades civilizadas. Tal como um pai que colhe resultados depois de anos de dedicação aos filhos, dizia, com os índios o resultado era ainda maior, já que estar-se-ia sempre a salvo da falsidade da civilização.

Uma mentalidade renunciante se revelava por trás do projeto missionário de f. Timotheo de Castelnuovo. Viver com os índios adquiriu ao longo de sua trajetória o sentido da rejeição à ficção da civilização, em nome de uma existência pautada pelo convívio com os “filhos das florestas”, expressão da humanidade autêntica.

Para a modelagem da missão capuchinha entre os selvagens no século XIX, não faltavam modelos na tradição franciscana. (…) O tema da diversidade dos povos nas inscrições franciscanas nos leva às missões evangélicas empreendidas por São Francisco no período que vai de 1 111 a 1 212, no contexto das Santas Cruzadas.

As missões das quais o santo participou se iniciaram na Península Itálica, indo em direção a Portugal e a Península Ibérica e por fim chegando à Terra Santa. Em Assis, colhendo os resultados das primeiras missões dos frades franciscanos, São Francisco teve a visão de homens das diferentes raças – e é este o conceito utilizado no início do século XX por J. Joergensen, naturalista e grande historiador da vida e obra de S. Francisco – lhe pareciam chegar de toda parte à capelinha da Porciúncula. (Joergensen 1958: 179).

No Tibagi do Paraná, as obras de construção do aldeamento de São Pedro de Alcântara se iniciaram em março de 1855 com a derrubada da mata, mas aguardou-se o dia 2 de agosto do mesmo ano para a inauguração do aldeamento (Arthur Martins Franco 1936: 205).

A escolha da data nos remete à lenda da capela da Porciúncula de Santa Maria dos Anjos, em Assis, Itália, plena de significados para os franciscanos. A cerimônia de inauguração do aldeamento foi realizada na capela improvisada na residência do missionário, dedicada a Nossa Senhora dos Anjos, contando “com a competente oração e acabou-se a festa com algum entretenimento e distribuição para os índios”. (…) Em momentos de crise no aldeamento a imagem de N. S. dos Anjos foi mais de uma vez mobilizada, como veremos nos episódios dos conflitos envolvendo os Kaingang e nas epidemias que assolaram as aldeias Guarani-Kaiowá.

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O trecho acima faz parte do livro Terra de índio – Imagens dos aldeamentos indígenas do Império, da pesquisadora e professora de antropologia Marta Amoroso. O livro foi lançado recentemente pela editora Terceiro Nome.

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