* Por Rafaela Romitelli *

A quarentena trouxe a explosão das lives, em cujo horário nobre é difícil escolher entre uma aula, um pocket show, ou uma conversa entre duas pessoas interessantes. Algumas são efêmeras, não ficam gravadas no Instagram; quem não estava online não verá mais – são as que mais dão sentido ao termo “live”, o assunto ao vivo, só para o “instante presente”, reacendendo o gosto de quando só havia a programação da TV aberta. No entanto algumas ficam gravadas no Instagram, ou então vão para o Youtube, tornando-se disponíveis para se ver posteriormente. Viram documentos históricos.

A live entre a jornalista Lilian Pacce e a historiadora Lilia Schwarcz foi ótima: duas mulheres inteligentes, cultas, maduras, falando sobre moda, arte, contemporaneidade, ativismo político. Ambas concordaram sobre o erro da revista Vogue ao colocar em sua capa  Gisele Bündchen vestindo as grifes Prada e Chloé, e a frase ‘Novo normal’ diante de um período delicado em que a humanidade se depara a com a pandemia do novo coronavírus. Gente sensata não se identificou com o tal ‘novo normal‘ e a publicação desde então tem sido duramente criticada nas redes sociais.

Schwarcz comentou o caso: “Criar conceito de normalidade vinculado a uma determinada classe e raça é política de silenciamento, de invisibilidade”. Ela e Lilian abordaram também a linha de máscaras da Osklen à R$ 147,00. A marca foi acusada de oportunismo e acabou tirando o produto do mercado nos últimos dias. Pacce minimizou. Pareceu ter bastante intimidade com a marca. Mencionou os vários programas sobre sustentabilidade (todos com nomes em inglês, como o “Regenerate Life” ou “As Sustainable As Possible”). Schwarcz rebateu: “A questão é um preço muito alto, num tempo em que é preciso repensar o consumo”.

A live estava com o conteúdo muito bom, quis então compartilhar com alguns amigos. Todavia, ao rever o vídeo no Youtube percebi que apenas o trecho da conversa em que se falou da Osklen foi removido. Não se trata de um vídeo editado, no sentido em que o conteúdo todo é recortado para dar agilidade; apenas esse trecho foi retirado.

Perguntei à Lilian Pacce porque o fizeram, a resposta foi de que há uma aviso que se trata dos melhores momentos da conversa. Ora, então os melhores momentos é todo o conteúdo, exceto o momento onde a Osklen não aparece bem na fita? Como uma pessoa tão elegante faz uma feiura dessas com uma historiadora do quilate da Lilia Schwarcz? Ela foi avisada? Tentei fazê-lo. Procurei-a pelas redes sociais, mas até o momento não houve resposta.

 Eu estava contente por ter achado o conteúdo da conversa no Youtube, mas a decepção ao ver a operação cirúrgica para não atrapalhar a imagem de uma marca deu o tom ao vídeo publicado no canal. Está ali um exemplo prático de “silenciamento histórico”.

O caso não deixa de ser mote para uma reflexão sobre o fenômeno das “lives”;  quem estava no momento em que o acontecimento foi transmitido viu a “história” que narro neste texto. Aos que forem assistir ao vídeo no Youtube vão ter acesso à uma deformação dos fatos. Um caso tão vexatório quanto a capa da revista Vogue.

PS.: A cicatriz que extirpou os comentários negativos da historiadora sobre a marca está no minuto 20 do vídeo.

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Rafaela Romitelli é arquiteta e ensaísta.

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