* Por Marcos Peres *

Borges diz que os idiomas produzem as palavras necessárias de seu povo; o léxico, assim, acaba se tornando um fruto da necessidade de um determinado número de pessoas, em um tempo-espaço também delimitados. Talvez esse raciocínio também seja válido na produção literária. É claro, não se impossibilita que um jovem queniano, leitor de Doyle, escreva sobre detetives que tomam chá das cinco e se cubram com grossos sobretudos; não se escusa que a Literatura seja escape dos limites territoriais, que seja o constante exercício de alteridade e empatia – o conhecer, de modo ativo, o lugar de fala alheio. Mas, ainda que nos embrenhemos em realidades longínquas, é impossível o desvio completo das condições férreas do nosso espaço, do nosso tempo.

Essa introdução (sobre o que somos, sobre o que escrevemos) poderia ser estendida por muitos tomos, por uma vida inteira de leituras. É, no entanto, apenas um norte de uma experiência recente que tive ao me defrontar com livros africanos. Nessa incursão, percebi que, não obstante a diversidade das línguas, os diferentes enfoques e personagens, muito da pungência dos sentimentos é feita do mesmo material.

O que une Mayombe do angolano Pepetela com o clássico O mundo se despedaça, do nigeriano Chinua Achebe? Nos dois romances, há um mundo antigo, ancestral – e fragmentado.  Os guerreiros do MPLA são reconhecidos por codinomes de guerra – Teoria, Sem-medo, Verdade, Lutamos – mas carregam incessantemente os traços de suas cepas e o caráter belicoso que nutrem contra tribos vizinhas. Também a fragmentação está presente na obra de Achebe: ao falar do povo ibo, o autor mostra como Umuófia era temida e reverenciada pelos demais clãs.

Mas, se há cicatrizes internas, há o inimigo comum, externo. Na obra de Pepetala, os soldados abandonam suas tribos, seus credos e vão para o Mayombe: “Manuela não foi suficiente forte para me reter no Aboim e eu escolhi o Mayombe, as suas lianas, os seus segredos e os seus exilados”, diz um dos narradores, que sabe que são feitos de diferenças, mas que precisarão de unidade para lutar contra o inimigo. Também o sabe Okokwio, o herói de O mundo se despedaça. No princípio, este protagonista parece ter um destino venturoso, e seu espírito guardião – seu chi – se mostra capaz de grandes conquistas. Okokwio constrói seu compound (pedaço de terra redondo e cercado por um muro de barro, que resguarda e protege seu lar familiar), seu obi (sua casa masculina) e ali coloca seus deuses lares e seu ikenga (referência ao que ele é, intransferivelmente). Mas, por um acidente, acaba tendo seu destino interrompido e é enviado ao degredo. Quando retorna, vê que o homem branco chegou a Umuófia com seu Deus único, com seu desrespeito a crenças e deuses ancestrais.

Se em Mayombe vemos a tentativa desesperada de criar um laço unificador perante o inimigo comum, em O Mundo se despedaça é nítido como o inimigo sabe se aproveitar da sociedade fragmentada tribal. Nesse romance, os brancos concentram seus esforços primeiramente nos osus, párias marginalizados na casta dos ibos.

“Esses párias, ou osu, ao verem que a nova religião recebia gêmeos e outras abominações semelhantes, pensaram que também poderiam ser aceitos por ela.

(…)

Houve uma súbita agitação; porém, tão bem-feito fora o trabalho da nova religião entre os convertidos que, ao entrarem os párias, os demais não se retiraram imediatamente da igreja”.

Em O mundo se despedaça, o choque entre culturas é visto de perto pelo conflito entre o protagonista e seu filho, um apóstata. E, se em condições normais, um filho que abandona a crença do pai já pode ser motivo de celeuma, imagine em uma sociedade que crê que o espírito do falecido só terá paz se os seus sucessores orarem para seus ikengas.

O branco aceita a rebeldia, o ressentimento, junto com os sonhadores. Dentre os catequizados, está o filho de Okonkwio, Nwoye – um fato imperdoável, já que a sobrevivência de Okonkwio depende que seus descendentes o guardem, assim como ele guarda seus ancestrais. Nesse momento, o mundo começa a se despedaçar.

E o mundo se despedaçou em várias línguas, em inúmeras tribos, sob o jugo de muitas bandeiras imperialistas. As tribos angolanas de todos os musseques se reúnem no MPLA contra o Tuga, contra os Nguêtas da Pide (polícia portuguesa); nesta luta, usam depreciativos linguísticos para o homem branco português. Da mesma forma, no romance Um grão de trigo, do queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, o exército imperialista britânico chama o exército Terra e Liberdade (movimento anticolonialista do Quênia) com o pejorativo Mau-Mau.

Em O mundo se despedaça, a divisão do povo é vista como causa da efetividade do colonialismo, que soube se aproveitar do terreno fraturado para se entranhar com seus costumes e suas verdades. Já em Meio sol amarelo, da nigeriana Chimamanda Adichie, a fragmentação popular é consequência de um projeto de ódio imperialista que não se cicatrizou mesmo após seu término. Só o colonialismo, diz Chimamanda, foi capaz de criar a plataforma sangrenta e gris que fez com que norte e o sul da Nigéria se despedaçassem em massacres de igbos – e que culminou na criação da República de Biafra.

A carnificina de então foi precipitada pelo governo colonialista britânico, que culpou os ibos por uma greve nacional, mandou fechar os jornais em língua ibo e, de maneira geral, incentivou o sentimento antiibo. A noção, portanto, de que as matanças recentes são fruto de um ódio “antiquíssimo” é enganosa. As tribos do Norte e do Sul mantêm contato há muito tempo, pelo menos desde o século IX, como atestam as magnifícas contas encontradas no sítio histórico de igbo-Ukwu.

Um povo produz a etimologia necessária, já dissemos. E a guerra é feita de armas, da união forçada de um povo fragmentado, da eleição de um inimigo comum, mas também é feita de léxico. De registros. De criação de apodos, de símbolos unificadores. É feita de armas, mas também preenchida por mensagens, como a que um dos personagens de Mayombe deixa ao inimigo, um bilhete direto, não muito educado.

SACANAS COLONIALISTAS

VÃO À MERDA, VÃO PARA A VOSSA TERRA

ENQUANTO ESTÃO AQUI

NA TERRA DOS OUTROS

O PATRÃO ESTÁ A COMER A VOSSA MULHER

OU IRMÃ, CÁ NAS BERÇAS.

Um contra-ataque, possível. A possibilidade de retrucar com palavras às armas, aos jugos, à falta de liberdade. A prova que a Literatura, seja contra o imperialismo europeu ou contra as ditaduras latino-americanas, é inalienável, intransferível, indominável.

E a guerra é o tema principal em muitas obras do continente africano. É, por exemplo, mote de Muito longe de casa, livro memorialista de Ishmael Beah sobre a dolorosa experiência de viver a guerra de Serra Leoa, na infância. Mas também as experiências bélicas podem aparecer incidentalmente, como estopim de outras intrigas. Assim acontece em Esperança para voar, da zimbabuana Rutendo Tavengerwei, que narra a amizade de duas garotas (Shamiso e Tanyaradzwa) e a rotina adolescente de um colégio no Zimbabwe, colorido com a disputa presidencial. Também a guerra não é leitmotiv de Meu Pequeno país, de Gaël Faye, Burundienseatração da FLIP 2019, um rapper que, já em seu primeiro romance, teve a obra traduzida para mais de 30 idiomas. Este livro trata da infância de Gabriel e de seus amigos, das descobertas da juventude misturadas com a realidade belicosa de Burundi e de Ruanda, e do significado de ser Hutu ou Tutsi, naquele contexto. Hutus e Tutsis também demarcam as ações e os conflitos do instituto Nossa senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga, de Ruanda (atração da FLIP 2017). O livro narra o cenário que fertilizou o genocídio de Ruanda, em 1994: um colégio elitizado, com o ideário de formar a nata feminina de Ruanda, mulheres destituídas de seus costumes locais, afrancesadas na língua, nos costumes, na religião.

Obviamente, há romances que não tratam de cenários belicosos. Mas isso não impede da transmissão de uma atmosfera densa, uma paz frágil, o constante medo de que a guerra não seja exceção, disso sabe o continente, com todas as suas tribos, em todas as suas línguas e etnias. A paz é apenas um período breve e passageiro, a realidade é gris e férrea, como prevê o narrador de Meu pequeno país.

Os homens desta região eram parecidos com esta terra. Sob a calma aparente, por trás da fachada de sorrisos e grandes discursos de otimismo, as forças subterrâneas, ocultas, trabalhavam continuamente, fomentando projetos de violência e destruição que retornavam em períodos sucessivos como os ventos ruins. 1965, 1972, 1988. Um espectro lúgubre apresentava-se em intervalos regulares para lembrar aos homens que a paz não passa de um breve intervalo entre duas guerras.

Temas urbanos – reflexão sobre o casamento, sobre a solidão – são o mote do belo De volta a vida, da Nobel sul-africana Nadine Gordmer. Mas ao narrar a adoção de uma criança negra, contaminada com HIV e abandonada, somos iluminados pelo halo espectral do Apartheid. O mesmo halo que aparece nas guerras veladas de Desonra, do também Nobel e também sul-africano Coetzee. Ou que pode ser enxergado nas alterações de voz do igbo, ioruba e inglês da trama familiar Os Pescadores, do nigeriano Chigozie Obioma.

Estes dois mundos – os costumes do colonizado e do colonizador – por vezes se chocam, muitas vezes se fundem em misturas complexas. Como a matriarca de Os pescadores que cita trecho de Provérbios da Bíblia… em igbo. Ou a elite feminina do colégio Nossa Senhora do Nilo, que é bombardeada por influências católicas (como sugere o título da obra), mas que não pode se esquecer de seus antigos deuses, das rainhas tutsis, de todos os seus mitos fundadores. Também se fundem (e se estranham) o novo e o antigo em O mundo se despedaça, quando os convertidos ao cristianismo não entendem que ibos e osus (os párias) têm o mesmo valor para Deus – o Deus que está agora no céu, e não mais no chi, não mais nos altares particulares, devotados aos ancestrais. Coabitam, em maior ou menor grau, um sincretismo complexo; a fé e a entrega total ao Cristianismo não excluem misticismos, crenças, exortações que remetem aos seus pais, ao sangue de seu sangue, as suas primitivas relações com o mundo.

Alguns textos evidenciam o caráter de contação de histórias, destas que são transmitidas pelo tempo, hereditariamente (essa ancestralidade que é cara aos costumes africanos). Por exemplo, apesar da estrutura formal complexa de Nosso Musseque, do angolano José Luandino Vieira, o livro é narrado de uma maneira quase oral, com o protagonista contando as desventuras de uma comunidade popular, no estilo de nosso O Cortiço. Também é uma estrutura complexa a narrativa do (anti) herói Mugo, do sensacional romance Um grão de trigo, do queniano Ngugi Wa Thiongo – que esteve na FLIP 2015 e figura sempre na cabeça das últimas listas do prêmio Nobel. Ainda que de estruturas mais simples, o selo de ‘contador de história’ não é minimizado em muitos romances africanos; a sensação de escutar uma lenda de um mais-velho, de forma oral, está presente em Os pescadores, do nigeriano Chigozie Obioma, em Tempo de migrar para o norte, do sudanês Tayeb Salih, em O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, do cabo-verdiano (e prêmio Camões) Germano Almeida e no ‘Cem anos de solidão africano’, A caminho de casa, da ganesa Yaa Gyasi.

Quando não escritos através dos véus fantasiosos e luxuriantes da ficção, os romances são escritos com linhas tênues entre o real e o imaginário, como nos pastiches argelinos O Caso Mersursault (Kamel Daoud) e As Verdadeiras Riquezas (Kaouther Adimi), que brincam com Camus e constroem, a partir do prêmio Nobel de 1957, narrativas baseadas em sua vida e obra. Em outros casos, o tom real é mais forte que a ficção: “O Mayombe começa com um comunicado de guerra. Eu escrevi o comunicado e… o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim nasceu o livro” fala Pepetela, sobre a escrita do quase jornalístico romance; também se esbarra na aspereza do real o romance Muito longe de casa, que possui o subtítulo de “memórias de um menino-soldado” e narra a trajetória de Ishmael Beah, autor e narrador, guerrilheiro infantil de Serra Leoa, combatente dos rebeldes da Frente Revolucionária Unida.

Do outro lado da moeda, na poesia, enxergam-se outras dores, revestidas no lirismo de Noemia de Sousa (que é citada por Emicida na linda Cananéia, Iguape e Ilha Comprida).

Noemia de Sousa – Súplica

Que onde estiver nossa canção

mesmo escravos, senhores seremos;

e mesmo mortos, viveremos.

E no nosso lamento escravo

estará a terra onde nascemos,

a luz do nosso sol,

a lua dos xingombelas,

o calor do lume,

a palhota onde vivemos,

a machamba que nos dá o pão!

Outra questão registrada com urgência na literatura africana é a exposição do sofrimento de muitas mulheres. Paulina Chiziane foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique. Não por acaso, seu Balada de amor ao vento é uma denúncia lírica à poligamia (ao direito de o Homem ter várias esposas) em seu país. Essa mesma poligamia – a objetificação e a precificação da mulher – é também vista em Um grão de Trigo e O Mundo se despedaça, e pode ser visto em maior ou menor grau em qualquer obra que tenha uma visão crítica da realidade africana do século passado. Em Tempo de migrar para o norte, a questão sexual é cara ao enredo: está lá a falta de voz da mulher, que não pode negar o casamento se o seu pai concordar com o matrimônio; está lá o homem com mais de uma esposa e que enxerga a mulher como um item qualquer da feira; está lá a prática abominável da mutilação do clitóris, calcada em valores morais (o romance foi publicado em 1966, a criminalização da prática da mutilação no Sudão só ocorreu dias atrás, em maio de 2020).

No entanto, o romance de Tayeb Salih (eleito algumas vezes como o romance árabe mais importante do século passado) tem um vetor oposto, não convencional: se os romances africanos tendem a mostrar o jugo europeu em solo africano, nesta obra vemos a saga de Mustafá Said, que vai estudar na Europa e, lá, inicia um projeto de chacota dos valores do continente. Por este motivo, a obra é tida e descrita como espécie de Coração das trevas às avessas. Trata-se do africano que invade o território do colono, trata-se do colonizado que desdenha da alteridade e dos valores do outro. Quais valores? Salih sabe que uma andorinha não faz verão – que um sudanês não é capaz de extinguir milênios de crenças, de costumes, de preconceitos europeus. Como fazer com que um soldado sem armas, sem bandeiras e sem dinheiro desdenhe os pilares do inimigo? A resposta de Salih é tão engenhosa quanto triste. O personagem Mustafá Said age em solo europeu como um Don Juan iconoclasta, um agente que vê na sedução a maneira de se vingar do inimigo, dizimando a população feminina europeia. E, se no romance enxergamos uma inusitada reação do colono, por outro lado a vítima não se altera: o livro trata de feminicídios, estupros e mostra que a violência contra a mulher é um problema que não está restrito a um espaço geográfico.

É importante ressaltar que, apesar de tanta crueza na descrição da realidade, é da África que saem algumas das mais potentes vozes do movimento feminista de nossos tempos, como Scholastique Mukasonga e Chimamanda Ngozi Adichie. Aliás, o vídeo de Chimamanda, Todos nós deveríamos ser feministas, feito para o Ted, possui mais de 6 milhões de visualizações e demonstra a potência de sua voz.

Sei que os exemplos aqui poderiam ser coloridos com outros livros. Histórias de guerra com outros sotaques, temperadas com emoções universais, o amor, o ódio, o sentimento de pertencer a alguém, a um povo, a liberdade. Sei que não citei muitos livros que poderiam ser enquadrados nas categorias acima. Obviamente, não é um rol exaustivo, mas apenas uma experiência pessoal e, com toda certeza, marcante. Nestes tempos de confinamento, enxerguei-me como um espectador de um continente – e nesse processo me emocionei, me diverti, me choquei. Se queres ser universal, cante sua aldeia, uma lição antiga e absorvida pelo coração das trevas de todos os cantos da África. Seus amores, seus gozos e seus choros são também nossos, são alegrias e tristezas que correm em nossas veias.

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Marcos Peres é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autor de O evangelho segundo Hitler (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein?

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Na foto, a nigeriana Chimamanda Adichie

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