*Por Léo Tavares *

 Um cão corre na noite, passa por mim resoluto, não olha para os lados. O corpo curvado para a frente, depois alongado, em retesamento, depois curvado para a frente, depois distendido, prolongado sobre si mesmo. As patas dianteiras tocam o chão, estão próximas do ventre, não tocam mais, estão no ar, as patas traseiras imitam as primeiras, o cão voa perfilado ao meio-fio, as orelhas do cão são pontudas, orelhas de dura cartilagem que o vento tenta dobrar e quase consegue, as bochechas pretas do cão se inflam e se esvaziam, a baba do cão em câmera lenta é uma aspersão de prata em direção ao asfalto. As almofadas das quatro patas do cão são ásperas e se retraem quando recebem o peso do corpo, um ritmo pneumático que teria o som de pffff… pffff… pffff… se o nosso ouvido fosse, de repente, dotado da qualidade auditiva do cão. O cão corre e seus olhos se apequenam apanhando a visão do que está adiante, o focinho do cão se abre para o turbilhão de cheiros, todas as informações computadas para o cérebro de detetive que tem o cão, cada cheiro uma pista ou uma memória. O cão tem memórias que são ao mesmo tempo densas e voláteis, ou se tornam voláteis assim que o incognoscível toma conta do sentimento do cão. O sentimento, que agora é de pressa, antes de angústia com um pouco de saudade, daqui a pouco uma mistura de fome e raiva, o sentimento bem sentido do cão se confunde com instinto, a morte ao encalço desde que o cão nasceu, o cão sentindo a morte no pescoço e fugindo da morte, tudo isso atravessado por uma coisa que o cão não sabe que é amor e é. Mas agora o cão deseja. É tão urgente que o cão se entregou à velocidade cinco esquinas atrás e se fixa na força de um pensamento que é gana: alcançar aquilo que se afasta mais veloz do que ele consegue perseguir, então cheirar uns braços, proteger um corpo e se sentir em pleno cumprimento de um objetivo de vida na sua tarefa de ser guarda. E o cão sente também desolação. Ao sacudir a cabeça o cão quer se livrar do desencanto. Porque o cão não entende, mas assimila tudo. E de tanto assimilar, o cão ganha um entendimento que está fora do humano. E o cão ama. Tem um semblante de um homem que o cão inspira pelas narinas, o suor do homem o cão guarda na lembrança, inconfundível como a sensação da chuva fina que agora faz brilhar o pelo curto e preto.

Meu coração bate mais forte quando olho para trás querendo saber do cão. Eu ia numa direção, o cão na oposta. Eu me perdendo pelas vitrines e postes, o olhar se avizinhando com aquele meio-fio e desabando sobre as poças d’água. Então, a pressa do cão me atravessou e o amor do cão me atravessou. Fui transpassado pela vida do cão. Não nos conhecemos. Sinto por ele. Apenas. E logo, muito menos rápido do que gostaria, entendo que na verdade sinto por mim. Me pergunto se vai encontrar o que persegue. Parece que escuto o coração do cão batendo por trás do meu quando giro a chave na portaria do meu prédio. Já estou subindo a escada e perdi a presciência. Não escuto mais nada. Não vejo o corpo do cão refreando as patas, o corpo do cão se dobrando um pouco à esquerda para conter a velocidade, as orelhas do cão abaixando-se e os dentes abrindo espaço para um latido, depois outro e outro. Meus olhos não recebem o cintilar metálico da traseira do carro refletido nos olhos do cão, nem a janela do carro se abrindo para reconhecer o rosto do homem e sua voz firme, sem nenhum arranhão, dizendo “vai embora, Duque! Vai embora! Sai!”. Não sinto o encolher do cão começando com uma crispação no pescoço, nem o tatear confuso das patas. O som do carro ganhando distância, o cão olhando de soslaio na direção das buzinas, os faróis dos carros acendendo o vermelho nos olhos do cão, a lentidão que o corpo do cão assume e que assume o olhar do cão, a vida do cão por entre as curvas, os dias e os meses, sobre os canteiros, atrás dos prédios, o amor do cão muito vivo e a mágoa do cão apertando o dentro do cão, a fome e o incognoscível, as vozes da noite, a lembrança do cheiro, o abandono tem rastro?, os contêineres, os anos, o que é carinho?

*

Léo Tavares é autor dos livros de contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer (Editora Modelo de Nuvem), vencedor do prêmio Contista Estreante, promovido pela FestiPoa Literária – Festa Literária de Porto Alegre, e Ruibarbo do Deserto, editado pela Patuá em 2019.

*

Imagem: Study for a Running Dog, Francis Bacon

Tags: