Insone

* Por Ricardo Ramos Filho *

Mantenho os olhos abertos. Mesmo desejando-os fechados não tenho a disciplina de controlar a vocação momentânea de desobediência deles. Teimam em não se refugiar atrás das pálpebras. Querem vagar pela escuridão do quarto, procurar imagens impossíveis de serem fixadas ali sobre o travesseiro, na espessura da treva. Também livre o pensamento vagueia. E segue por onde eu não desejaria. Por caminhos incômodos. Angústia e sobressalto aliados na vigília. Tento em vão buscar as imagens idílicas ensinadas na infância:

– Devemos buscar cenas bonitas antes de dormir. Reproduzir situações harmônicas e felizes – dizia vovó.

Não consigo. Os breves cochilos alcançados, fugazes, arremessam-me no desespero de saber meu amigo entubado. Longe, na Itália.

Fomos jovens e boêmios. Houve um tempo sem morte em nossas vidas. Não refletíamos sobre o futuro. Amanhecíamos de ressaca. Estoques de Engov  davam conta direitinho. Chegávamos cedo ao bar cotidiano. Nele outros companheiros. Cecilinha, Chico fazendo  tricot, chocar era um grande barato. Samamba, o Samambaia, por ter cabelos compridos semelhantes à planta, Rogério, Paulo Sergio. O pai do David não tinha uma perna, a gente o chamava de Sacisão. A irreverência satírica jorrava fácil de nossas falas. E o Edmondo, entregue agora ao covid italiano.

Certa vez, em um guardanapo de papel, entre um gole e outro, ele, entusiasmado estudante de Matemática, demonstrou por meios científicos, numericamente, a inexistência de Deus. Eu não precisava daquilo, minha falta de fé bastava. Contudo, foi interessante, nunca mais me esqueci, ver a comprovação da existência impossível de uma força superior. Éramos meninos, mas admirávamos a Ciência. Estudávamos, apesar da alegria da vida muitas vezes nos chamar para a irresponsabilidade. Demos conta, nos formamos, fizemos mestrado, doutorado, navegar era preciso. Por isso estranho ver pessoas fazerem questão de se mostrarem estúpidas e ignorantes. Cérebros planos. A gente lia, assistia todos os filmes, discutíamos sempre. Saber argumentar era motivo de admiração. Decorava Bandeira e recitava nas festas:

“Eu faço versos como quem chora

De desalento… desencanto…

Fecha o meu livro se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto”

Talvez deseje mesmo chorar. Dizem ser a cama bom remédio para lágrimas teimosas. Aqui neste breu, os bugalhos acesos, sinto o rosto úmido. A falta de ar domina meu entorno. Quem sabe por sugestão? Certamente.

“Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes

Embuçado nos céus?”

Suor. Pijama enxarcado. A caveira olhou-me batendo os dentes. Minha peixeira debaixo do colchão.

“Se entrega, Corisco!

Eu não me entrego não,

Não sou passarinho

Pra viver lá na prisão.”

Vacina, vacina!

Tudo certo como dois e dois são cinco.

Respire, Edmondo, respire.

Fevereiro/2021

*

Ricardo Ramos Filho  é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior. É Professor de Literatura, Doutor e Mestre em Letras no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa na área de literatura infantil e juvenil, onde vem trabalhando academicamente Graciliano Ramos – seu avô -, privilegiando o olhar sobre seus textos escritos para crianças e jovens. Ministra diversos cursos e oficinas literárias: como aprimorar o texto, literatura infantil, roteiro de cinema, poesia, conto,  crônica, romance. É roteirista de cinema com roteiros premiados. É orientador literário e analista de originais, colaborando com escritores na elaboração de seus livros. É cronista do Escritablog , publicando no espaço Palavra de Cronista, e do InComunidade, revista de literatura do Porto, Portugal. Participa como jurado de concursos literários: Proac, Portugal Telecom, Prêmio São Paulo de Literatura. É presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio-proprietário da Ricardo Ramos Filho Eventos Literários cria e produz eventos culturais. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

 

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