Leia trecho do livro “Literatura, meu fetiche”, de Ítalo Moriconi (Cepe Editora)
A questão da crítica
O literário é fetiche. A morte e ressurreição cíclicas do fetiche literário são a definição mesma de história literária e determinam as condições da crítica. Fetiche é o objeto que nos afeta e nos atrai por estar investido de um valor a priori. Engatamos em primeiro lugar no fetiche e somente pela experiência do corpo a corpo da leitura interagimos com a singularidade daquilo que lemos, na solidão/sugestão de desejos sublimados. Passa a valer o escrito. O “valor literário” é o valor de fetiche do objeto de linguagem que disciplinarizamos como literário. Disciplinarizar significa inserir numa tradição, numa narrativa histórica e mitológica, numa comunidade metodológica. Marcada pelas continuidades, desvios e rupturas do processo histórico, a disciplinarização confere ao literário um valor institucional e afetivo apriorístico que antecede e emoldura suas manifestações únicas. Esse é o valor de fetiche do literário, análogo ao das artes nos museus.
Dito isso, passemos ao tópico: a crítica. No Brasil, desde os anos 1970, a crítica literária vem se formando nos bancos escolares. A própria geração de escritores surgida naquele período encontrou no âmbito universitário e na rede escolar o espaço de divulgação e discussão de suas primeiras obras, na prosa de ficção como na poesia. Aquele foi um momento marcante de encontro entre universidade e vida literária. Esta última, porém, na década seguinte, estiolou-se em proveito da primeira. A partir do estudo pioneiro de Flora Süssekind (incluído no livro Papéis colados), tornou-se um truísmo identificar o processo pelo qual a crítica jornalística de rodapé saiu de cena, levando junto os personagens de uma antiga elite boêmia letrada autodidata.
De um lado, o pensamento literário passava a concentrar-se na academia (na universidade), em estreita colaboração com as ciências sociais e com a chamada teoria mais que com a dinâmica das artes e da comunicação. Do outro, os suplementos de livros na grande imprensa adquiriam um perfil voltado para resenhas. Perdia presença a imprensa cultural especializada, dos periódicos de frequência mensal ou indefinida. As pós-graduações em Letras consolidaram-se nesse contexto e a crítica universitária atingiu um momento de esplendor, expresso na produção de toda uma geração de grandes mestres — Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Jr., Luiz Costa Lima, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Walnice Nogueira Galvão, Leyla Perrone-Moisés são apenas alguns dentre tantos nomes que definiram a época.
Se entre os anos 1970 e 1980 a crítica universitária foi o gênero definidor do perfil de época, na década dos 1990 um novo campo irrompeu, um novo suporte que modificou drasticamente a arena das relações: vimos o surgimento do circuito de produção e circulação do literário na internet, com a chegada e proliferação dos sites e blogs. Renasceu uma vida literária externa ao espaço acadêmico, embora ao mesmo tempo vinculada a ele, até pelo fato de que seus protagonistas em sua maioria eram ou tinham sido universitários, embora não necessariamente de Letras. Daí emergia um novo personagem. No lugar da antiga elite letrada, parasitária de uma burguesia de velho estilo, temos agora a massa dos amadores, praticantes por conta própria do literário, massa de trabalhadores-empreendedores, revelada ou escondida sob assinaturas reais e falsas, nomes próprios, pseudônimos, máscaras de todo tipo. Exibir-se como personagem e fazer a autoparódia desse exibir-se são duas linhas de força contrastantes na nova massa de escritos da virada do século, entre o sublime sentimental ou narcísico e a sátira demolidora.
Num primeiro momento, a nova vida literária da virada do século rejeitou, de maneira bastante enfática, os valores e discursos cultivados pela pós-graduação em Letras brasileira, expressando assim a animosidade do mercado e da sociedade contra a prisão disciplinar do aparato escolar. Queriam, e querem, uma sociedade livre para consumir e capaz de se entreter sem culpas. Uma sociedade livre de ideologias, em contraste marcante com o grito de Cazuza, que, na época, já soava anacrônico e nostálgico em relação à nova geração que surgia. Cazuza ainda foi uma voz poética filha de 1968. A nova geração de poetas e ficcionistas “não mais filha de 1968” inclinava-se pela desideologização e pelo desengajamento, opção paradoxalmente bem política — era a recusa do político como atitude política, exercício intuitivo da razão cínica contemporânea, no sentido crítico que lhe imprimira Peter Sloterdijk.
Tratava-se de uma reação ao fato de que a academia literária hiperpolitizara-se e embarcara no debate entre “estudos literários” e “estudos culturais”. Tal debate canalizou a luta de grupos e programas emergentes por maior espaço institucional no interior de uma situação de hegemonia vinda dos anos 1960, capitaneada por escolas como a orgânica e poderosa USP, de um lado, e, de outro, de maneira mais invertebrada, pela UFRJ, cada uma delas com sua coorte de satélites e/ou aliadas espalhadas pelo país. Hoje uma nova corrente se configura, alinhando em parentescos heterodoxos as escolas de Minas, Bahia, Santa Catarina, quiçá também PUC-Rio. A partir desse momento, passamos a ter na área de Letras uma vida intelectual de país desenvolvido, em que os debates e querelas podem ser melhor compreendidos se situados no quadro de tradições institucionais, configuradoras de modelos distintos de formação/educação. Temos embriões de Ivy Leagues estruturais em nosso sistema universitário — só falta, claro, o investimento em bibliotecas e midiatecas.
Diga-se de passagem, que o debate dos estudos culturais, tanto aqui como na origem anglo-saxônica, assim como na vertente latino-americanista, representou, na verdade, o desdobramento lógico, em versão politizada, da aproximação histórica entre a área universitária de Letras e as ciências sociais e o pensamento teórico. Este é por natureza desdogmatizador, desfetichizador, ao passo que a vida literária depende do fetiche da literatura como fator positivo. Ao longo de três décadas, dos anos 1960 aos 1990, o ensino universitário da literatura desconstruiu o fetiche da “boa literatura” em nome de uma ciência/política geral dos discursos e da noção do texto como objeto do desejo estético, autorizado por disciplinas que iam desde a psicanálise e a antropologia até os marcos existenciais e estéticos de um contexto favorável ao anticonvencional, às experimentações, às vanguardas tardias ou pós-modernas, aos minimalismos antinarrativos.
Tudo isso mudou. As sucessivas levas de novos escritores surgidas desde os anos 2000, com algumas exceções, não pareciam interessadas em desconstruir o signo literário ou questionar convenções de qualquer tipo, até porque esse tipo de questionamento já se tornara ele próprio convencional e repetitivo. Elas se mostraram interessadas em recuperar e praticar o valor positivo do fetiche literário enquanto algo pragmático, buscando seu público não através da mediação da academia (como ocorrera em parte no caso da geração 1970) e sim na relação direta com as clássicas instituições do mercado e da vida literária extra-acadêmica.
Contudo, nos anos 2010, observamos que sai de cena o discurso de animosidade contra a academia. Há levas de novíssimos chegando e uma revalorização do “pé na academia”, agora como reação ao que havia de raivoso e unilateral no discurso anti. Percebe-se como útil o pé na academia, tanto pelo papel sistematizador que o saber disciplinar proporciona, quanto pelos contatos profissionais possibilitados pelas redes de relacionamento presenciais e virtuais das universidades. Eu pessoalmente valorizaria também e muito o espaço de livre pensar que uma bolsa de estudos deve permitir — mas isso é uma outra discussão…
Num tempo sem tempo livre, será legítimo esperar livre pensar?
Para o bem ou para o mal, os novos escritores, assim como editores e curadores, passaram a ser os personagens definidores do perfil de época, desbancando o poder até então exercido pela crítica universitária. Esse poder pressupunha que um escritor só pode ser bom se tiver “espírito crítico”. O escritor padrão da virada e início de século propõe um outro critério: a capacidade de atrair leitores ou, no mínimo, seguidores, sem a prévia verificação de credenciais estéticas ou ideológicas. Ao longo da década de 2010, em nova virada do parafuso, tornou-se importante como critério de valor crítico apriorístico a vinculação da escrita literária à subjetivação militante das políticas identitárias. Artivismo hoje.
Resta saber como se dará a decantação qualitativa, pois, assim como ocorrera na geração anterior dos anos 1970, muitos ficarão pelo caminho, por não conseguirem sustentar em sucessivas obras consideradas de peso a qualidade demonstrada no livro de estreia, sem descartar outros fatores fortuitos (sorte, por exemplo). Acredito que esse processo ocorrerá naturalmente, num trabalho conjunto, mas não necessariamente coordenado, entre crítica universitária, de um lado, e consagração por segmentos de mercado e redes virtuais, de outro.
Será certamente preciso que a universidade saiba se reciclar para atender às demandas da nova vida literária e dos circuitos de divulgação e distribuição desse objeto-fetiche que é a obra literária enquanto produto — do romance ao conto, ao poema, ao diálogo dramático, à autoficção, ao relato de vida. Não se trata de decidir entre “estudos literários” e “estudos culturais”, entre retroceder a um tipo de erudição beletrista anacrônica ou submeter a atividade criadora a guerras discursivas pré-estabelecidas. Mas que os cursos de pós-graduação em Letras possam ser formadores de quadros para ocuparem as múltiplas posições profissionais ensejadas pelo mercado cultural e editorial, assim como abrir na marra espaços de inclusão social. A universidade pode e deve fortalecer seu papel de mediadora livre entre vida literária e pensamento crítico, entre mercado e academia.
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Ítalo Moriconi é o organizador dos consagrados Os cem melhores contos brasileiros do século e Os cem melhores poemas brasileiros do século. É doutor em Letras e professor de literatura brasileira e comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O lançamento da Cepe traz sua produção crítica dos últimos vinte anos.