* Por Edmar Pinto Costa *

JOÃO MANOEL DA SILVA NASCEU 3-12-37 NO ESTADO DE ALAGOAS SANTANA, anuncia uma talha feita pelo artista que esteve pendurada dentro do seu “museu” por décadas até a sua morte. Em Santana do Ipanema, Alagoas, no sertão nordestino nasceu João Manoel da Silva. De família pobre com muitos irmãos, acompanhou milhões de brasileiros e buscou, desde muito jovem, condições melhores no centro-sul do país. Trabalhou com familiares em lavouras de café no Paraná e retornou poucas vezes à terra natal, onde deixara seus pais e alguns irmãos. Em uma das ocasiões resolveu buscar caminho no mais distante lugar do Brasil: o final do Mato Grosso.

Em 15 de abril de 1958, aventurou-se sozinho em uma viagem que redefiniria os rumos da sua vida. Tão distante de casa chegava à cidade de Corumbá, conhecida como a “capital” do Pantanal e, segundo ele, “onde o Brasil acaba”, à beira do rio Paraguai na fronteira com a Bolívia. Em busca do seu sustento, foi abordado, ainda na estação ferroviária, por um fazendeiro da região e aceitou uma proposta para  trabalhar no campo. Impôs a condição de que pagaria por seus próprios instrumentos e vestimentas, a fim de manter sua independência caso o patrão não gostasse do “serviço do alagoano”. Então, mudou-se para a região do Nabileque, área importante para a pecuária do Pantanal, onde “limpou mato” e cuidou de bezerros guachos. A lida era pesada, mas também eram as alegrias: dos afazeres que tinha, dava conta de tudo e contava orgulhoso sobre um grande cocho que fez para alimentar os animais. Teve êxito na empreita e caiu nas graças do fazendeiro.

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Deste tempo, recordava-se do quanto se espantou com os enormes “rebanhos” de emas, garças, tuiuiús, jacarés, catetos, araquãs e tantos outros animais silvestres, ambiente muito diverso do seu lugar de origem. Rindo, contava ter tentado correr atrás dos animais, sem nunca alcança-los. Divertiu-se neste tempo mas, como já nos contou o poeta Manoel de Barros, no Pantanal faz muito calor e tem muito mosquito. Então, com a vida um pouco mais organizada, o nortista resolveu seguir o trecho.

Depois de trabalhar em outras fazendas em atividades diversas, já casado com Aparecida, moça prendada, filha de um boiadeiro de Coxim, estabeleceu-se em Campo Grande, cidade pujante que viria a ser capital do novo estado, Mato Grosso do Sul. No local, comprou um terreno em uma área distante do centro, onde só haviam plantações de arroz. Construiu um barraco para morar, com um fogão a lenha e cercada de pau-a-pique. Com o tempo, construiu uma casa nova ao lado, o asfalto chegou, alguns dos confortos da cidade… porém, a tônica rural o acompanhou: sempre plantou frutas, verduras e legumes para o sustento, a água de beber vinha do poço e a das plantas, armazenada da chuva.  Ali, junto a família, o alagoano viveu até o final da vida.

Até aqui, João Manoel da Silva levava a vida como os tantos Joões da Silva da crônica de Rubem Braga que, em “Luto da Família Silva” nos lembra de quem “quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta  os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos  navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha.” Mas, chegando na cidade, este João redescobre a madeira e, aos poucos, acrescenta sua particular trajetória à história de tantos outros homônimos Brasil afora.

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No cotidiano urbano, buscou se adaptar a outras atividades. Tentou ser auxiliar de pedreiro na construção civil, mas descobriu que não tinha jeito. Sem experiência anterior, trabalhou principalmente como guarda noturno, com direito a quepe e arma na cintura. Este processo de migração do campo para a cidade, temporário ou permanente, é comum a um grande número de artistas brasileiros, segundo a antropóloga Lélia Coelho Frota. Madalena dos Santos Reinbolt, Conceição Freitas da Silva (Conceição dos Bugres), Neves Torres e Estevão Silva são alguns dos exemplos mais conhecidos. Foi então que, nas longas noites de solidão, viu seu interesse pela madeira reaparecer.

Quando criança, criava boizinhos de galhos de árvores e outros brinquedos com as ferramentas desassistidas do pai. Manezinho era um carpinteiro habilidoso, fazia cabeças de promessa (ex-votos) para romeiros que iam a Juazeiro do Norte-Ceará levarem em devoção ao padre Cícero. João, autodidata, sempre se recordava que o pai dizia: “ninguém me ensinou, então você também vai ter de aprender sozinho”.  Adulto, recomeçou fazendo pequenas figas de madeira que presenteava aos amigos como amuletos. Logo diversificou o repertório. Nesta época, apesar de dizer que não tinha ideia para “fazer gente”, o artista fez autorretratos: esculturas marcadas por recortes e ângulos agudos, as vezes, encimadas por uma boina, como a que orgulhosamente carregava durante o expediente de trabalho. Pelo seu relato, essas obras em nada são parecidas com os retratos realistas feitos pelo pai. Chegou a criar esculturas em pontas de chifre, mas na madeira encontrava melhor caminho. Não demorou até que começasse a esculpir outros elementos de seu passado e do cotidiano. Em seguida, passou a recordar outras memórias.

Das primeiras criações e que considerava das mais simbólicas em sua obra, foi o carro de boi. O veículo foi de fundamental importância na história do Brasil, muito popular na nossa cena rural até o século XX e que ainda hoje é utilizado, principalmente no nordeste brasileiro. Como consequência, o tema é comum a muitos artesãos, com uma infinidade de interpretações e formas. O próprio João, ainda menino, esteve na lida com o carro de boi na função de guia, sujeito que ia à frente dos animais e a quem seguiam afim de desviar de buracos, tocos e pedras.  Em Campo Grande, MS, foi erguido nos anos 90 um grande mural em granito e metal, da artista Neide Ono, com esta temática em referência à chegada das comitivas paulistas e mineiras aos campos da Vacaria que um dia viriam a se tornar o novo estado. O artista considerava que seus carros de boi retratavam o principal símbolo do estado onde vivia.

Em seguida, deu início à feitura de burrinhos de carga, animais que via serem usados pelos almocreves da região onde cresceu. Esses animais foram, e ainda são, muito utilizados no Brasil tanto para o transporte de pessoas quanto de cargas.  Em sua cidade natal, Santana do Ipanema, depois de muita polêmica foi erguida, ainda na década de 60, uma escultura em homenagem ao jumento e seu tangedor. Ao contrário do monumento público que ficou conhecido pelo tangedor Candinho, vendedor de água, João Manoel omite o homem e destaca os animais, cansados, com os lombos pesados a suportar as cangas carregadas com as bruacas.  Foram dezenas, quiçá centenas de trabalhos deste animal, um deles: o burrinho preto, foi presenteado ao seu sogro que o guardou até o final da vida e que João veio a herdar.

Tanto os carros de boi quanto os burrinhos foram feitos ao longo de toda a produção do artista, concomitante a outras criações, até o final de sua vida. Ao longo do tempo, tanto a forma quanto os materiais usados nestes trabalhos se diversificaram, se desdobrando em uma pesquisa longa e constante em busca de uma solução plástica que agradasse. Com o tempo, parece ter encontrado o caminho e, assim como grande parte de seus trabalhos, o resultado se desdobrou em uma certa geometria. Os animais, que no começo eram arredondados, passam a ter uma forma angulosa com o corpo quadrado e as orelhas em pé, acompanhadas dos olhos arregalados.  A base é sempre em madeira e à ela são adicionadas palha, bambu, estopa, borracha, folha de bananeira, couro, arame e tantos materiais diversos.

Produziu peças utilitárias como gamelas, pilões e bases em madeira para vasos de jardim. No início, despertou interesse dos patrões que as adquiria e o incentivava. A filha Cláudia e o neto Ethan sempre o motivaram, colecionando seu trabalho e guardando as mais diversas criações, feitas especialmente para eles. Quanto feliz com o resultado de uma nova peça que imaginava não agradar ao público, destinava estes trabalhos para a coleção da família.

Seu trabalho, junto aos esforços de sua senhora, Aparecida, permitiram que, depois de anos, pudesse transformar o barraco onde morava no que chamava de museu. Ali, em um pequeno cômodo, escorado por uma viga de aroeira, guardava parte de sua coleção particular com suas próprias obras, algumas poucas de outros artistas do estado, além de ferramentas diversas e  inúmeras lembranças do passado. Mostrando alguns machados antigos de quando ainda fazia derrubadas no pantanal e, ciente de que na vida ora se erra, ora se acerta, discorreu: “A gente guarda uma lembrança como quem guarda um retrato de alguém querido. Esses machados são de quando a gente via vantagem em derrubar árvore.”

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O reino animal é majoritário em sua obra. São animais silvestres: tuiuiús, garças, corujas, pica-paus, emas, araras, caburés, tucanos jacarés, onças, antas; mas também os utilizados no trabalho como os já citados bois, burros, cavalos.  Sempre esculpiu em madeira, tanto moles quanto duras: cerejeira, cedro, aroeira, ipê, amendoim, amarelinho, itaúba, goiabeira, lixeira, caixeta. O material é proveniente de demolição, tocos comprados em serrarias, aproveitados de descarte, levados por amigos e clientes e até mesmo de árvores podadas no entorno de sua casa. Certa vez, com muito lamento, utilizou os galhos de uma laranjeira que tombara em seu quintal. Segundo ele, “madeira é igual à carne: tem de primeira, de segunda…, mais macia, mais dura, fiapenta…”. As ferramentas, ressalta, são todas manuais, algumas feitas por ele: serrotes, grosa, machado, facão, canivete, lixas.

Suas ideias “vêm da memória”, depois aparecem na madeira. Ao observar um pedaço do material, logo sabe o que vai sair dali. Questionado sobre a relação com outros escultores que conhece, imediatamente diz, orgulhoso, que não há em lugar algum do mundo algo igual ao que faz. “Só de olhar, o sujeito já sabe que a peça é do menino aqui” dizia ele. Ressaltava sempre a importância de cada um ter seu trabalho, e ninguém ficar copiando o outro. Ainda assim, foi incentivado a ministrar uma oficina a jovens da cidade e também incentivou seu genro a esculpir. Entretanto, morreu sem deixar nenhum seguidor direto que continuasse seu trabalho.

Geralmente, João parte de um bloco de madeira, se atendo à conformação inicial do material para daí tirar partido. Tanto nos troncos brutos, cuja casca às vezes aparece, quanto no uso de madeiras já beneficiadas e transformadas em vigas, seu trabalho parece ser mais de recortes que propriamente entalhe.  Nota-se que, principalmente, as laterais e a parte inferior se mantém como no formato original. Nas esculturas feitas a partir de vigas e caibros já beneficiados pelas serrarias e marcenarias de onde provêm, notamos como o escultor se aproveita dos ângulos geométricos ali sugeridos e potencializa sua forma.

Antes de começar, ele “risca” a madeira. São três ou quatro linhas paralelas, na maioria, que nortearão a proporção do que está por vir: cabeça, tronco, pernas, base.  A partir do riscado, o escultor desdobra seu intento, sempre considerando o que dá pra “tirar da peça”, fazendo recortes ou subtrações, geralmente em ângulos retos, que vão gerar a forma. João Manoel dizia não saber desenhar.

Depois de “recortada”, a madeira é lixada até que os veios e as irregularidades quase desapareçam. O resultado são obras limpas, lisas, sem a representação de penas, escamas, pelos. Em alguns casos, as diferenças entre os animais são quase imperceptíveis: questionado sobre a diferença que, para outros, não é tão óbvia entre um tuiuiú e uma garça, rapidamente ele aponta para a pequena crista sobre a cabeça da última e gargalha, combinando sutileza e humor.

Chama atenção que, em várias de suas obras, o artista parece deixar evidente de onde saíram seus animais. Os poucos arroubos plásticos permitem que se imagine o bloco de madeira de onde surgiram. Isso fica mais claro no tuiuiú que alimenta o filhote e no caburé de cauda longa que, de certa forma, alcançam em cada um dos seus extremos parte do bloco original retangular.

Os tucanos apontam seus bicos de formatos variados para cima e sugerem, dada a posição do peito cheio e aberto, um elegante destemor, em oposição a tantas outras aves de cabeça baixa, mais tímidas e vigilantes que intimidadas. Estes apresentam variedade de formas, bem como entalhes diversos: alguns em pé e outros aninhados, quando as pernas desaparecem e os detalhes ficam por conta de sulcos laterais da ponta das asas: uns mais quadrados, outros seguem a quina da viga de onde saíram. Um deles, se destaca pelo corpo que, tão econômico, pode ser identificado somente pelo bico, escapando por pouco da abstração.

Diferente do artista falante, risonho e contador de histórias, o resultado do trabalho é silencioso, quase comportado. As espécies são conhecidas do escultor, parte do seu convívio, principalmente no passado. Em geral o artista os apresenta sozinhos, parecem introspectivos e, ao mesmo tempo, alertas. A cabeça que aponta para baixo dos tuiuiús, garças, caburés parecem enfatizar esta percepção. Os olhos, identificados por um circulo, são grandes, arregalados e, apesar de abertos, nada parecem fitar. O boi, ainda que robusto e pesado, não parece amedrontador ou violento, ao contrário: é complacente, servil e calmo.

Os trabalhos que são compostos por mais de um animal apontam para uma relação pacífica e, por vezes, amorosa. Não há conflito ou disputa. Os pica-paus pousam em conjunto.  As mães de garças e tuiuiús alimentam filhotes tranquilamente, esculpidos no mesmo bloco, ficam unidos pela base e pelos bicos.  Garças e corujas  esperam vigilantes no lombo de burros e reses,  como que pacientes e gratos pelo cuidado recebido.  Algumas destas esculturas apresentam algo inusitado: bois e cavalos de duas cabeças, apontando para extremos distintos.

Todas as esculturas de aves possuem o que o artista chama de base: uma parte significativa do  bloco da madeira que, por estar na parte inferior, posiciona e  apresenta a peça acima. Esta “base” tem função estrutural, servindo como ponto para o equilíbrio e sustentação da obra, mas também estético: ainda que integrada, suporta o animal e o dá mais ênfase, de modo que o mesmo se distancie da “terra”. Em alguns casos, os bicos ou as caudas se alongam, acompanhando pelo lado externo o desenho do “toco” onde estão pousadas. Os bichos alados de João Manoel estão sempre com seus pés  fincados nesta base num sutil e firme baixo-relevo, que enfatiza o pouso. Não há movimento ou dispersão, as asas juntas ao corpo evidenciam o intento.

A escultura do artista ressoa, em vários momentos, trabalhos do modernismo.   Em seu Galo, Brancusi incorporou uma base circular, que é parte do monobloco de madeira. João Manoel parece tirar proveito de princípio semelhante em suas aves.  Aliás, não parece demais observar que em vários aspectos da sua obra: economia formal de sua escultura, ausência de elementos decorativos, lisura da madeira, pouca agitação, predileção pelas aves e mesmo na repetição dos animais que juntos formam uma coluna; o escultor alagoano encontra interesse em características também caras ao artista romeno, ainda que João nunca tenha ouvido falar do distante colega.

Uma exceção na obra do artista são os índios. Contemporâneo da escultora gaúcha, também radicada no MS, Conceição Freitas da Silva, a Conceição dos Bugres, João Manoel fez os seus. Com a mesma estrutura cilíndrica econômica que a escultora utilizava, porém mais  detalhados e com o vão das pernas vazado, suas peças mostram índios em atividade, carregando potes na cabeça, nos afazeres do dia-a-dia e se relacionando com os animais do entorno. Campo Grande possui uma grande quantidade de indígenas, da etnia Terena principalmente, morando no ambiente urbano. João Manoel sempre se relacionou com as índias que vendiam mandioca, milho e frutas próximo de sua casa. Suas figuras porém, são imaginadas: apresentam cocares, cestas na cabeça, em devoção, geralmente com o peito desnudo.

 

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João Manoel pouco lia ou escrevia, frequentou a escola por apenas seis meses. Inicialmente, para identificar sua obra, riscava a letra M. Com o tempo, o artista passou a recorrer à técnica comum aos fazendeiros: confeccionou marcas de arame simples com suas iniciais  JM ou M que, com o fogo, ele queimava, geralmente na parte inferior, cada escultura. Humilde, mas vaidoso, fazia questão de identifica-las, algumas vezes colocava sua marca repetidamente.

Pontualmente, destoando do corpo de sua obra, fez referência a sua própria história através de trabalhos como a talha que registra seu nascimento, a palmatória que castigava as crianças na escola, os seus autorretratos e, por fim, um entalhe com o contorno de sua própria mão.

Sua obra, combinada à sua história, parece ecoar a  percepção da artista Louise Bourgeois sobre seu próprio trabalho, que apontava: “A verticalidade é afirmação, uma tentativa de um compromisso pacífico e um desejo de aceitação”. As aves do pantanal esculpidas por João Manoel podem ser vistas como uma  homenagem do alagoano ao então Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul. Considerava o lugar que o acolheu “uma maravilha” e é onde, depois de uma longa busca, pôde fazer de lar.

Sempre faceiro, dizia amar a vida e agia como se estivesse sempre a agradecer por ela. Ainda que sempre falante e observador, sobre sua arte discorria pouco. Desconfiava da relevância que tinha o seu fazer. Seu trabalho não revelou um contador de causos de um passado sedutor, buscando dar conta da história que vivenciou ou um cronista a entrar nas minucias do cotidiano, como parece ser comum a vários artistas de origem semelhante a sua. João se atentava para a escultura, trazendo à tona uma obra moderna que revela, com um olhar apurado e fresco, sua versão do que viu. Sorrindo, mostrou as últimas obras que fez em 2017, pouco antes de morrer, e me disse: “Gostou dessas peça? Se for bem boa, daqui quatro meses você vai gostar mais. Cada dia você olha mais um pouco… todas as coisas precisa de atenção”.

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Edmar Pinto Costa é publicitário, pesquisador independente e colecionador de arte brasileira.

 

 

 

 

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