Paris N’América

* Por Hector Bisi *

Choveu três dias sem parar e quando as ruas voltaram a ser  ruas o ajudante de ordens do governador foi até o palacete no meio do comércio trash da rua Santo Antônio, Tu não podes mais sair de casa, entendeste? A cidade está debaixo d’água por tua causa.

Azzolini morava no terceiro andar desse palacete art noveau que sobrou dos tempos dos barões da borracha, ele também uma sobra, vivia da loja de tecidos que funcionava no térreo e do dinheiro que herdou como último descendente da família, tempo tempo tempo para dividir seu afeto entre os mais de mil livros e o closet com roupas nunca vistas por essas bandas. Antes da Primeira Grande Chuva, Azzolini foi visto galopando a madrugada da Presidente Vargas no seu cavalo Marajoara, capa preta flutuando sobre o terno Armani com ombreiras e gravata tipo Lavallière. Todo mundo em Belém já ouviu falar dele, ninguém sabe quem ele é. Os deliveries de comida foram inventados pra isso mesmo, né oficial?, pra gente não sair de casa.

Nos primeiros dias, como nunca teve cachorro ou gato, Azzolini passou a levar seu sobretudo de jacquard para passear. Subia e descia a escadaria da loja com o sobretudo em uma das mãos, depois nos ombros (havia uma tapeçaria bordada de cima a baixo na parte de trás), fazia evoluções e às vezes dançava com a luminária em forma de mulher que ficava no meio dos dois lances da escadaria e era aplaudido pelas funcionárias e clientes. Antes da loja de tecidos fechar, de segunda a sábado Azzolini descia dos seus aposentos, uau, aposentos é muito século dezenove, e ia até o caixa, Como foi o movimento hoje?, e a funcionária mais antiga preparava um sanduíche frio pra ele antes das garotas do Lapinha chegarem, noites-Tainá, e subia com elas até o mirante, de onde na direção da Igreja das Mercês se podia ver a Baía do Guajará, noites-Dayanne, e lá de cima não perdia o costume de olhar para a vaga do estacionamento onde ficava seu cavalo Marajoara, Noites-Sharon, vaga que agora era ocupada pelo Escort XR-3 preto de algum playboy, Como que tá na boate?, não, não tenho ido, a última vez foi no Réveillon black-tie do ano passado, show do Rudistar, hummm, quanto você cobra pra ficar até de manhã? Noites do Norte, sexo Belle Époque.

Tantas vidas viveu na sua biblioteca que Dorian Gray ficou obcecado pelo seu savoir-vivre e Bukowiski, bêbado, mandou ele à merda e foi para o Lapinha e John Fante esperou a primavera e Humbert Humbert perguntou pelas lolitas-jambo e Jean Genet saiu da prisão na Guiana Francesa pra dar pra ele. As noites em que não havia garotas eram as noites em que tinha medo, um medo dele mesmo, do que fazer quando só o silêncio grita, Ter tempo é uma ilusão, quanto mais tempo eu tenho mais me desconheço, pensar pode ser um ato de rebeldia mas ser obrigado a pensar é crueldade. Prefiro meu videocassete. Para ele, o ano não estava passando nem rápido nem devagar, o dia-Azzolini não era dividido em horas, mas em páginas, e quando terminou de reler o Viagem ao Redor do Meu Quarto, do Xavier de Maistre, que ganhou do pai na adolescência com a dedicatória Prepare-se, você vai precisar deste livro tanto quanto eu precisei, por acaso era sábado à noite e não por acaso ele estava há quase um ano trancado em casa. Subiu a Santo Antônio a pé na direção da Cidade Velha.

African Bar, festa de final das filmagens do Brincando nos Campos do Senhor. Desculpe, só entra com nome na lista.

Azzolini estava na lista ( todo mundo em Belém já ouviu falar dele, ninguém sabe quem ele é). Por aqui, tu falas português? Os primeiros pingos de chuva. A pulseirinha VIP. O autógrafo na blusinha baby look da hostess, efeito sobretudo de jacquard + esse aí deve ser outro fodão de Hollywood. Daryl Hannah dança com Hector Babenco na frente do balcão onde Tom Berenger toma whisky e está tocando Shout, do Tears for Fears, e todo mundo some no meio do gelo seco que novayorkiniza ainda mais o clubinho quando o DJ Tarrika, Ladies and Gentlemen, Mr.Tom Waits is in da house.

Azzolini foi pegar champanhe no balcão ao lado do Tom Berenger do whisky do Tom Berenger e da garota que queria dar para o Tom Berenger, Your overcoat is very cool, man, enquanto o outro Tom começava a cantar I Hope That I Don’t Fall in Love With You. Ei, fala português?, não me lembro de você nas filmagens. Não tô no filme, mas com certeza você é a atriz principal. Hahah, não, sou só a assistente de direção. Você tem pinta de galã. Vem, vou te apresentar pro Hector, pra Daryl. Eles já conhecem muita gente, prefiro dançar com você. Galã e sedutor, já vi tudo. Deixa o casaco no sofá, tá quente. Melhor não, ele não gosta de ficar sozinho. Não lembro a última vez que dancei música lenta. Quer saber, a gente nunca mais vai dançar assim, PORRA, TOM, THIS IS NOT A SONG, IT’S A PLACE. Thank you, sweet Candice. Candice Bergen?, uau. Quem? Nada, uma atriz aí, não é do seu tempo. I can see that you are lonesome just like me. And it being late, you’d like some company. Acho que a gente podia dar o fora daqui. Tem alguma ideia? Vou te levar pra Paris.

No meio do caminho os dois desceram do táxi pra andar na chuva. Você tem uma pintinha perto da boca, garotas com pintinhas perto da boca têm superpoderes. Ah é?, qual seria o meu? Acho que a gente vai ficar gripado. Hummm, sabe o que eu acho mais maneiro em Belém? Todo mundo tá sempre molhado, ou de chuva ou de suor. Só tem duas estações aqui, chuverão e chuverno. Haha, de onde você é? Ah, vai dizer que ainda não percebeu. Meu pai é da Marinha, foi transferido do Rio pra cá. A gente mora na Base Naval. Já fui muito lá, no Cine Catalina. Quando eu era adolescente, gostei de uma garota que morava na Base e tinha o mesmo nome que o seu. Hum, será que a nossa história vai se repetir como farsa? E você, faz o quê? Já fui professor da Aliança Francesa. Vai ver que é por isso que você não falou ééégua nenhuma vez, nem usa o tu, que paraense mais contrabandeado.

Chegamos. Caralhooo, você mora no Paris N’América. Oui. Como é morar num lugar desses? É viver dentro de um déjà vu. Eu e a Daryl entramos aqui na semana passada, até tirei foto dela na escadaria. Uh lá lá, se todo mundo que tira foto na minha loja comprasse meus tecidos, acho que vou começar a cobrar. Como é que eu não te vi? Fico mais lá em cima.

E levantou a mão dela tipo tô te tirando pra dançar e escadaria e Tom Waits e o loft no terceiro andar e a escada caracol que dá no mirante e a chuva que virou toró e Candice não-Bergen e mãos se procurando até ela jogar o soutien Valisère que usava como top na correnteza que se formava lá embaixo.

Cadernos Equatoriais

Segunda Grande Chuva – 1990. 

Domingo

O dia amanheceu egoísta, só pra nós dois.

Depois do café e dos ovos quentes, Candice telefona pra mãe e diz que tá tudo bem mas talvez demore pra voltar pra casa.

Ligo a chuva: abro as janelas.

Dois calores fazem a gente voltar pra cama, ventilador no máximo, fita do Asas do Desejo no videocassete.

Fodemos no mirante no fim da tarde, a água já quase na metade da porta da loja, o vento que vem do Guajará, as janelas embaçadas fazem a noite existir só lá fora.

Segunda

Minhas funcionárias telefonam logo cedo, elas não vêm trabalhar. As baixadas de Belém estão alagadas.

A Santo Antônio tá um rio. Ligo a TV na hora do jornal, meio-dia na metrópole da Amazônia, o governador, as águas, blá blá blá.

Tô na minha poltrona de couro gasto que já se moldou ao meu corpo de leitor. Candice pergunta se pode ligar pra melhor amiga e logo escuto o grito do outro lado da linha quando ela diz onde está. Mais de duas horas no telefone, essa garota quer me falir? Depois ela vem e me beija, estou relendo Diário de um Ladrão. Ela abre meu zíper e antes de colocar tudo na boca pede pra eu ler um trecho, Eu teria desejado que uma glória, visível, brilhante, se manifestasse na ponta dos meus dedos e que a minha potência me levantasse da terra, explodisse em mim e me dissolvesse e me dispersasse em um aguaceiro aos quatro ventos. E então eu choveria sobre o mundo.

Terça

Acordo Candice com Foi Assim, bolero do Paulo André e do Ruy Barata, e dou meu LP da Fafá pra ela. Tô usando um dos meus fraques e ela dá risada e me chama de meu pinguim.

Ela vai fazer xixi e eu gosto de ver os fios do seu cabelo loiro nos travesseiros e nos lençóis, invadindo o meu território,

o desejo talvez seja isso, uma invasão consentida do nosso território.

A gente vê na TV que a chuva coincidiu com uma maré alta inédita pelos lados do porto. As águas do Guajará inundaram o Boulevard Castilho França, o comércio, subiram pela pequena ladeira onde fica o prédio de três andares do Consulado da Inglaterra onde eu passava dias brincando com o filho do cônsul, o único garoto que não me chamava de Gato Preto e não me evitava depois que os marginalzinhos da nossa sala no Marista descobriram meu sobrenome e aquela coisa que falavam sobre a minha família (na hora da chamada, os professores não ousavam ir além do meu nome do meio).         As águas foram parar na Praça da República. Mangueiras no chão, carros empilhados, barcos circulando pelo centro.

É o quarto dia de toró. Eu sei que eles vêm, já deveriam ter vindo na verdade, mas eles vêm.

Quarta

Fodemos enlouquecidamente, no sentido de enlouquecer a mente e fazer o advérbio valer a pena.

 

Quinta

Acordamos depois das 13h.

Meu estoque de comida ainda dá pra mais uns dias, delivery agora só se for de barco.

Não tomei café da manhã e fui fazer o que tava evitando desde o começo, desci pra ver a situação da loja. A água entrou.

Não estamos apaixonados, mas o que isso importa?

Sexta

Azzolini, tu não vais sair daí nunca mais.

Reconheço a voz no megafone, é o ajudante de ordens do Governador. Vou até a janela, uma voadeira da Guarda Costeira e uma lancha menor estão na frente do que era a minha loja.

Agora é sério, Azzolini, a polícia vai ficar aqui vinte e quatro horas, entendeste? Vinte e quatro horas. Tu não vais sair dessa espelunca nunca mais. E sinto te informar, teu cavalo morreu afogado.

Não conseguimos foder, Candice está com medo.

Nós sempre teremos Paris N’América, babe.

 

Sábado

A chuva começa a parar, a água desceu um pouco mas ainda não dá pra sair. A lancha com os guardas continua aqui.

À noite, grito da janela se eles estão com fome, acabamos de fazer uma pizza. Fomos pra cama e foi diferente de todos os outros dias.

Candice foi morar de vez com Azzolini e continuou trabalhando na produtora, virava noites filmando, o confinamento não valia pra ela. Daryl Hannah passou um tempo com eles antes de voltar para os Estados Unidos. Hector Babenco telefonou dizendo que voltaria para filmar um documentário no palacete.

Um mês depois de nascer de parto normal dentro do Paris N’América, o bebê de Azzolini e Candice saiu de casa com a mãe pela primeira vez. Ao mesmo tempo, um Cessna com o governador e seu ajudante de ordens decolava do aeroporto de Belém debaixo de um temporal repentino.

*

Hector Bisi nasceu em Belém, na Amazônia. Foi Engenheiro, Redator Publicitário e Agente de Modelos. Seu primeiro romance, Copacubana (Ed. Edith), foi lançado no Brasil e na Argentina (Ed. Milena Caserola). O segundo romance, Rua dos garotos maus, acaba de ser lançado na França e na Bélgica pela editora Bozon 2X. Colaborou com a revista L’Officiel Hommes Brasil durante 2 anos. Tem contos publicados no site francês La Cause Littéraire e já participou de encontros literários na Sorbonne. Vive atualmente entre São Paulo e Paris.

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