* Por Lorraine Ramos *

Recentemente, o grupo editorial multimídia Aboio (portal e produtora audiovisual) tornou-se uma editora. O espaço, formado para fomentar a literatura nacional contemporânea nos círculos independentes, tem se inserido na produção de livros. Seu catálogo é constituído tanto por traduções de autores estrangeiros quanto obras autorais de brasileiros, respectivamente, Lu Xun, Anna Kuzminska e Paulo Scott. Esses dois últimos nomes figurando na seção intitulada “Coleção Sargaço”, que se destina a publicar obras que tratam de temas como melancolia, luto, paranoia e isolamento. Não por coincidência, o novo livro do poeta, contista e romancista gaúcho foi feito no período da pandemia.

“na fricção das árvores/ a transformar o som/ de um mundo à noite/ que já não me chega em luz”

Esses versos marcam o jogo de contrastes que caracteriza os escritos da penumbra em Luz dos Monstros (Editora Aboio/2022). Não somente na metáfora, o contraste carrega o poder de praticar a interferência em dois ou mais polos, construindo uma equação de vozes em determinado ambiente. As formas do paradoxo portam um repertório que vai além da junção de dois extremos, que, segundo o escritor Marcelo Diniz sobre “Máquina de escrever”, de Armando Freitas Filho, a relação entre corpo e objeto está presente nos elementos diferenciados: “Um signo que reproduz em sua própria polissemia a tensão entre a apreensão orgânica e inorgânica do corpo, compreendendo o signo máquina em sua oscilação entre a metáfora e a metonímia”

O percurso do livro se inicia e termina em capítulos bastante determinados em suas partes, sendo eles Prólogo, Livro Dois, Livro Três e Luz dos Monstros. Nas seções “Livro”, a configuração textual se dá a partir não mais da quebra de linhas nas estrofes, mas sim na formação de poemas em prosa, sendo apenas um texto para cada “Livro”. Ambos tratam da condição da morte em suas variadas facetas em cada narrativa, possibilitando a mediação entre elas para serem lidas como se fossem um grande poema.

Luz dos monstros, por sua vez, se define em um interessante formato de comunicação digital: procedimento em HTML. Os versos se apresentam ao leitor tal qual uma configuração de internet (full_text; created_at), incitando a esse a sua inserção nessa nova realidade que vivemos, especialmente nos períodos mais críticos do isolamento social pandêmico.

O corpo e a miríade de imagens e suas escolhas como uma das temáticas mais proeminentes são importantes para compreendermos o processo da poética de Paulo: a sequência dos fatos de um cotidiano está colocada em signos (luz, poeta, olhar, você) que são enfatizados durante o caminho da leitura. Através dos sentidos, as palavras e nelas processadas a sua simbologia retratam um tempo, como um nascimento (vida) e luto (morte).

Um corpo que se arquiteta mediante o papel branco e o próprio ato da escrita (o poeta e seu ofício). Essa “engenharia lírica” se traduz em libertação do indivíduo, uma chamada para sua imersão em questionar e se questionar tanto nas sombras da sociedade quanto na esperança de sair das mazelas. “o desejo que (do sonho deposto) comigo/ agora retorna a teu olhar”.

Além do movimento em torno do próprio corpo, a metalinguagem, como acima referida, é alçada em vários trechos dos capítulos de Scott. Esse poder da oralidade e texto é filiado a uma percepção do compartilhamento do processo de um escritor a quem o lê. A fala é tratada como decodificação, mas igualmente um discurso direto, feito nocaute: “poeta que não cansa e sabe -/ sem linguajar, sem poema/ última e (raríssima) chance/ de talvez entender o amor”. Esse poeta, inclusive, pode ser qualquer um de nós “poeta programa de auditório”; “poeta dependente químico”; “poeta que vai no antigo emprego e xinga”. No final, não há separação entre a posição de leitor e escritor, mas sim uma ligação umbilical, algo conjunto, harmonioso.

Nessa exposição da linguagem e do ato de escrever, nos é feita uma cadeia social entre corpo, sujeito, objeto, imagem e realidades diversas, resultando em constante tensão desse ser que faz uma jornada dada sua mente provocadora. Mark Fisher, em “Realismo capitalista” (2009), pontua sobre como as máquinas e seu desenvolvimento tecnológico são dirigidas para uma certa “cegueira social”, tornando os cidadãos meros aparatos de uma sociedade voltada ao lucro, e consequentemente não se importando com a existência das pessoas e suas características próprias.

Na orelha de Luz dos monstros, “mesmo sob a égide da crueldade sempre renovada do capitalismo, a comunicação persiste, as improváveis conexões, as guelras, de suas incertezas também”.

Tendo em vista essas provocações, a representação do animal sargaço cai como uma luva: uma alga marinha que aparece de forma repentina em nossas praias latino-americanas. De modo curioso, a areia é alterada para um tom melancólico de um dia para o outro. Ao transbordarem, somente o tempo pode devolver esses animais das sombras e luzes à água. O que seria, afinal, o tempo nesses últimos anos de significativa mudança?

Semelhante ao sargaço, esse novo livro de poesias de Paulo Scott nos coloca em contato com o Outro, fenômeno impossível de ter ignorado tanto nos períodos mais severos do isolamento social quanto em nossa sociedade selvagem, individualista. Nessa era de “vazios”, Luz dos monstros é um sopro, uma revolta tanto em sua singularidade quanto no coletivo.

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Lorraine Ramos é escritora.

 

 

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