1 | Sétimo dia

 

O que se narrará adiante bem poderia ter sido um sonho. O filho mesmo, que ainda dorme como um feto no apoucado espaço desta poltrona de hospital, quando acordar, não saberá ao certo se acordou para a vida ou para um sonho. Vagaroso, tardará um bom tempo até se dar conta de que o ar que respira está carregado do conhecido cheiro de hospital que o persegue há dias, que o toque das suas mãos no ombro do doente lhe comunica a realidade tátil esperada de um toque em acordado, que o som das palavras absurdas proferidas pelo enfermo é tão nítido quanto o som das palavras verdadeiramente pronunciadas, que as gotas de sangue que salpicam o chão ao redor do pai são também vermelhas, como vermelho é o sangue de todo homem. Diante desta realidade tão facilmente detectável, Antônio concluirá, ainda letárgico, que aquilo, não sendo um sonho, é mesmo a realidade deste instante, como são igualmente reais os sete dias em que já estão neste hospital.

Mas não aceleremos os passos, não adiantemos os fatos. Afinal, Antônio ainda dorme apagado no cansaço, esquecido num fundo escuro de sonho, e por isso não ouve quando o pai desperta acossado por uma pontada de dor que lateja na sua nádega esquerda. Desperta pelo meio da madrugada, quatro e dezesseis da manhã, para não pecar em pontualidade. Acorda e tenta se levantar. A princípio não consegue, são muitos os empecilhos que o impedem. O maior de todos é a sua falta de força, a exaustão do seu estado. Mas o intuito é se erguer, pôr-se de pé e andar, e ele o fará a qualquer custo.

Começa por retirar a máscara de oxigênio; em seguida, vai descolando os sensores de batimento cardíaco que monitoram o velho coração que bate, bate, bate, sem saber até quando, sem saber o porquê de bater até então, como todo o coração vivo. Até aqui a tarefa foi de todo fácil, de agora em diante topará o senhor Raul com obstáculos que lhe exigirão maior coragem, visto que este homem tem medo, um medo desconhecido e todo novo que o acompanha há sete dias, desde que entrou neste hospital, amparado nos braços do filho.

Num só puxão, ele arranca do braço o acesso responsável por lhe introjetar nas veias duas diferentes drogas e o soro. Não se importa com a dor desta violação, o que o preocupa é saber que este acesso foi conquistado a duras penas, já que a sua veia tem por hábito escapar teimosamente da destreza das enfermeiras, e ele desconfia que, caso tenha que se estender novamente nesta maca e dar o braço a um novo acesso, não serão poucas as malogradas picadas que receberá até que finalmente consigam domar a rebeldia da sua veia bailarina.

Agora, desvencilhado destes apetrechos que o prendiam à laia de frouxas algemas, o doente só tem que dar um jeito de se retirar da maca utilizando um mínimo de força, posto que a sua força anda no mínimo. E, para isso, ele se põe a deslizar, cuidadoso, para um dos lados, lado aliás em que dorme Antônio, espremido na estreiteza da poltrona.

Não é pouca a energia que despende o doente neste seu mover-se, estupenda é a sua perseverança no exercício desta tarefa tamanha, cercada de riscos dolorosos. À borda da maca, adiantado no seu intuito, o homem agora solta as pernas no vazio e tenta tatear o chão com as pontas dos pés. O que talvez ele não saiba, ou saiba mas não se recorde, é que o seu corpo ainda está atado ao leito por meio de uma sonda que lhe penetra pelo buraco da uretra e que se liga a uma bolsa pendurada à lateral da maca. E, assim, quando ele finalmente fincar os pés no chão, a sonda escapará da sua uretra e despejará pelo piso uma urina alaranjada e malcheirosa, envenenada pelas drogas que há sete dias lhe ministram. Mas isso não o apoquentará. Tanto é que, ao sentir sob os pés a firmeza do chão, o enfermo, inclinado sobre o cotovelo, dá o derradeiro impulso e se coloca miraculosamente de pé, bambo sobre os calcanhares, mas de pé.

Só então se dá conta da sua grotesca nudez, e se lembra afinal que já vinha estando nu há seis dias, desde que voltara do centro cirúrgico. Repara também que o avental, utilizado como faixa para esconder as suas partes dos olhos pasmos das enfermeiras, está caído no chão, bordejando uma pequena poça alaranjada que cresce mais e mais a cada instante. Zonzo, com as coisas do quarto brincando de ciranda à sua volta, o doente demora a vislumbrar umas gotículas de sangue que pingam aqui e ali, como gotas de um princípio de chuva.

Apesar do seu estado lastimável, o senhor Raul ainda põe toda fé no seu propósito. Crê, esperançoso, que o pior já passou, que agora ele está de pé, firme e seguro à borda da maca, e isso é prova inconteste do vigor da sua saúde. Acontece que um imprevisto descerá como um machado sobre ele e romperá de vez com o possível sucesso do seu plano. Porque assim, de pé, firme e seguro à borda da maca, este homem débil compreenderá enfim que não é dono de força nenhuma, que é incapaz até mesmo de um único passo, de um passo apenas, e que daqui, desta saleta de hospital transformada em UTI improvisada, ele jamais sairá sem o arrimo de um cúmplice.

Prontamente, ele cogita que será preciso alterar a estratégia do plano, que o cúmplice do qual ele necessita não poderá ser outro senão o filho que dorme ali ao lado, prestes a acordar para o que bem poderia ter sido um sonho, mas que não é. E, deste modo, percebemos que o plano original do senhor Raul era deixar Antônio ali, adormecido, enterrado num escuro de mau descanso, e sair sozinho deste hospital em passos firmes que assinalariam toda a integridade da sua capacidade física. Agora terá de acordá-lo e convencê-lo do impossível, convencê-lo do improvável, convencê-lo de que aquilo não é um sonho.

O doente, mesmo num princípio de tresvario, compreende o fracasso óbvio do seu intento, prevê o futuro insucesso do seu plano, todavia não pode ir adiante com seus próprios pés, tampouco pode retroceder com suas próprias forças e voltar a se deitar na maca. Debilitado como está, a única saída plausível é mesmo acordar Antônio, porque se não o fizer já, agorinha mesmo, pressente que logo menos desabará ao chão como uma coisa desfalecida e acabada. Filho, ele chama, quase num sussurro. E se vê tão privado de forças com esse mínimo esforço, que resolve chamar novamente, desta vez num quase grito. Filho.

Antônio emerge de imediato das sombras do sono, assustadiço, atordoado. Tarda todo um tempo distinguindo o que poderia ter sido um sonho e o que é de fato real, absurdamente real. O pai está ali de pé, é certo, mas não poderia estar. Está nu, sem a máscara de oxigênio, despido dos sensores cardíacos, o braço livre do acesso que lhe introjetava as drogas. Mas como? – pensa, todo atarantado. Percebe também que o homem está molenga, mal se mantém de pé, macambúzio, feito bêbado em porta de bar, e que se não o amparar rápido, ele vai ruir como um prédio demolido.

Ao agarrar o pai pelos ombros, Antônio desperta de vez e se põe a ajuizar o que ali se passou enquanto dormia. Não evita a pergunta. O que aconteceu? A palavra “pai” por pouco não figura ao fim da interrogativa, mas o filho ainda não aprendeu a pronunciá-la com a costumeira naturalidade. E a boca frouxa do senhor Raul, articulando mal e mal as palavras cansadas que forja, responde. O doutor, filho, o doutor esteve aqui enquanto você dormia, me examinou e tudo, deu alta pra mim e pra você também, faça as nossas malas e vamos embora. É o que o doente assevera, tentando dar à voz um tom de impossível serenidade. E, ao ensaiar um passo, bambeia, faz menção de se amparar na maca, mas dá um impulso para a frente e se abraça a Antônio, que o soergue com dificuldade enquanto grita pelas enfermeiras.

Uma, duas, três. Três são as enfermeiras que acodem aos gritos vindos de algum lugar e que varrem o corredor como um vento forte. Na saleta dos medicamentos, ao ouvir o primeiro grito, uma das enfermeiras consulta o relógio de pulso e encontra nele as quatro horas e os vinte e dois minutos desta madrugada em que estamos. Mal sai para o corredor e dá com a companheira abrindo a porta da saleta, é de lá que vêm os gritos. Uma a uma, as três enfermeiras encontram a cena acima descrita, com um acréscimo: o senhor Raul está quase no chão, posto que o filho sozinho é força pouca para suster o peso descomunal deste corpo em abandono. Só agora, com oito mãos unidas em favor do doente, é que será possível recolocá-lo na maca, a nudez explícita do seu corpo descansará novamente sobre o leito incômodo.

Mas a tarefa não se consuma assim fácil-fácil, porque o doente é teimoso, obstinado, e agarra com as duas mãos que tem a insustentável ideia de se pôr daqui para fora. Resiste e luta. Não, filho, não, o médico esteve aqui, é verdade, não faça isso com seu pai, não deixa, filho, não deixa fazerem isso com seu pai, implora o doente. Uma das enfermeiras, ardilosa, negaceia. Seu Raul, coopera com a gente, se não vamos ter que amarrá-lo, o senhor quer ser amarrado, seu Raul? O filho, assustado, já não sabe mais como ofertar ajuda, já não sobra espaço para o seu corpo estranho entre os corpos ágeis e sincronizados das enfermeiras. Por isso ele recua, se afasta, vê o doente lhe estender o braço implorativo em meio à roda das enfermeiras, mira no chão o avental encardido de urina e sangue, num dos ombros sente o toque sintético de uma luva de borracha, é a quarta enfermeira que chega. Pode deixar com a gente agora, vamos ter que preparar tudo de novo, e se você permanecer aqui será mais difícil, ela diz, mansa e mansa, segurando a porta para que ele saia.

O doente, estendido novamente sobre a maca, não quer desistir, não quer reconhecer o triunfo da sua derrota. Não, filho, não me deixe aqui, eu não quero ser amarrado, eu estou bem, o médico me disse, estamos de alta, eu e você, não vá, eu preciso regar as plantas, elas não ficam sem água, além do mais, eu sou seu pai, seu único pai. Antes de se retirar, o filho ainda assiste a uma das enfermeiras sumir com o sexo murcho e roxo do doente, cobrindo-o com a fronha do travesseiro, e lhe dizer numa meiguice dada às crianças. Seu Raul, o senhor não acha que já está bem crescidinho pra essas coisas? Olha que trabalhão o senhor está dando pra gente. Como é que vamos pegar a sua veia agora? E a porta se fecha diante do nariz do filho, completamente aturdido.

O corredor é um vazio imenso imerso numa meia penumbra, é um silêncio fundo, cavo, como se por detrás daquelas portas os doentes todos já estivessem mortos, é um frio inconcebível, incompreensível, visto que estamos em pleno dezembro e nestes dias tudo é feito de calor e suor. Lá no começo do corredor, à entrada do centro cirúrgico, há um pequeno hall com bancos e um bebedouro, é para lá que o filho anda, desorbitado, a mão deslizando esquecida pelo corrimão que se estende ao longo de toda a parede. Com o temor evidente de romper o silêncio grande dos enfermos, este filho senta-se cauteloso num banco, saca o celular do fundo do bolso, percorre com os dedos o caminho em busca de um contato e, ao encontrá-lo, dispara a ligação.

Aguarda. Tempo não tarda para que o atendam. E do lado de lá, lado de quem atende, sabem com acerto que é ele quem liga, porque são estas as palavras imediatas que o filho escuta no côncavo da orelha. Antônio, o que houve? O que aconteceu, filho? Ele está bem? O filho parece não saber mais falar, parece não saber por onde começar, e não começa. Antônio, você está me ouvindo? Antônio, aconteceu alguma coisa? A voz é de mulher e estoura alta dentro da sua cabeça. Ele afasta o celular da orelha, um dedinho de distância, e olha para o fim do corredor, lá está o quarto de número quinze, nem à direita nem à esquerda, ao centro, o último quarto, onde o corredor acaba. Antônio, você está aí? Está me ouvindo? Aconteceu alguma coisa? Responde, Antônio. Mas ele não responde, não descobre as palavras para responder. Ao invés disso, começa a chorar em silêncio, evitando o primeiro soluço, engolindo todos os ruídos que possam denunciá-lo, fitando à distância o número quinze pregado à porta do último quarto. Um primeiro ruído escapa, depois outro, e mais outro; o choro cresce desmesurado, desmedido, sem travas; os soluços sucedem-se uns aos outros e vêm de dentro num todo desgoverno. Liberto de todas as amarras, o filho agora chora convulsivamente. Antônio, se acalme, por favor. É o que ele ouve antes de abandonar o celular, jogado no banco ao lado, que permanecerá ali esquecido por muito tempo.

Quando a primeira enfermeira deixar a sala de emergência em busca de um avental limpo para que o doente possa se cobrir, dará com aquele filho ali no hall, encolhido sobre o banco, os braços em volta das pernas, chorando em desespero a poderosa angústia que inchou lenta dentro dele nestes sete dias em que já está neste hospital. E a tal enfermeira se dará conta, sem a menor sombra de dúvida, de que é a primeira vez que o vê chorar. Não estará equivocada a enfermeira, posto que nestes sete dias é a primeira vez que este filho chora as mazelas que molestam aquele pai.

*

Tiago Feijó é professor e escritor. Formou-se em Letras Clássicas pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de Literatura 2014. É autor dos livros “Insolitudes” (7letras, 2015), “Diário da casa arruinada” (Penalux, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e “Doze dias” (Penalux, 2022). Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura.

 

 

 

Tags: