* Por  Luciana Rangel *

Para Leo

A menina olhava abismada cada detalhe da casa. O jogo de chá, o papel de parede florido, a coleção de bonecas. Era porcelana? Acha que sim. A sala tinha cheiro de perfume. Tinha alergia, mas gostava,  mesmo espirrando. Não tinha idade para saber o que era, mas era gostoso, era acolhedor. Não ia muito naquela casa, era muito raro, quase um segredo a visita. Mas as vezes que foi, desenhou bem forte na memória.

 O vô Antonio costurava, a lembrança da menina falha, mas ela acha que o vô Alfredo também era alfaiate. Eles faziam roupas de bonecas caprichadas. As Barbies ganhavam coleção de moda, saias longas com tecidos sofisticados. Vestidos de festa e também fizeram um maiô, talvez de uma sunga velha. A menina achou muito bom.

Cores, muitas cores, eram homens coloridos. Quando vô Antonio usava terno laranja e o vô Alfredo usava terno rosa chá, eles trocavam a cor de lenço, tipo vô Antonio tinha lenço rosa chá e vô Alfredo laranja. Eram muito elegantes, enfeitados. São ainda, pois na nossa história as pessoas vivem. Nesse terreno arenoso da recordação, esquece-se muita coisa, perde-se muita coisa. Mas as pessoas queridas criam uma resistência dentro de nós.  As datas se confundem, embolam-se muitos adereços, mas o retrato da existência resiste.

Vô Antonio contava piadas, plantava brincadeiras até onde não dava. Fazia bolo de milho, chá e servia nas xícaras de porcelana. Quando fazia visita, ficava sempre muito pouco. Meia hora, talvez até menos. A menina achava que ele não podia ficar mais por causa do trabalho. Quantos ternos a coser, quantas coisas deveria ter o vô Antonio para fazer, já que não podia ficar muito. Era uma despedida com roupa de visita.

Em uma das passadas na casa dos avós, ela foi no banheiro e aproveitou a distração para entrar nos outros cômodos da casa. Achou um quarto com máquinas de costura, duas ou mais, muito tecido e bagunça, roupas penduradas e ensacadas com plástico, caixas e mais caixas com botões, linhas, tesouras. Bainhas marcadas, moldes, alfinetes com cabeças coloridas. Uma janela com uma cortina fininha onde entrava luz e o calor do sol leve das 9 da manhã.

A conversa continuava boa na sala e ela foi pro próximo quarto, porta encostada. Era um quarto com um armário antigo de madeira escura, cortinas finas para transpassar o sol, iguais as do outro quarto, duas cabeceiras, uma cama de casal. A roupa de cama era branca, bordada, tão bonitinha que ela se esqueceu que espionava. Florzinhas miudinhas bordadas, folhinhas verdinhas que se entrelaçavam. Nisso, uma mão delicada pousou no seu ombro pequeno e disse bem baixinho, “queridinha, tem mais bolo pra você.” Envergonhada, fez ahã e voltou com Seu Alfredo para a sala.

Seu Alfredo, o vô Alfredo, era diferente do vô Antonio. Vô Alfredo era calmo, tranquilo, quase não falava e sempre sorria. Perguntava amenidades, se o dia estava bom, se tinha chovido, como estava a escola. Vô Antonio, falava, gargalhava alto, tinha sempre algo muito engraçado pra contar e só parava de falar quando íamos embora ou ele ia embora. A menina não guardou a voz do vô Alfredo, mas a do vô Antonio esta guardada no gabinete de preciosidades da ala nobre das vivências.

Vô Antonio visitava mais, pois era avô oficial, e na meia horinha que ficava, levava a menina e o irmão para tomar um picolé na padaria embaixo do prédio. O irmãozinho era bem pequeno e vô Antonio sentava ele no balcão. Um dia o atendente não gostou e falou coisas muito feias para o vô Antonio. Ele não discutiu. Pegou o irmão, a menina e voltou com eles pra explicar pra filha que não tinha picolé naquele dia. A menina percebeu que ele mentia, mas ele estava triste e a mentira pareceu a ela não ser relevante.

Os dois eram bonitos. Tinham mais de 70 anos. Vô Antonio era careca e bem magrinho. Vô Alfredo ficou nebuloso. Uma foto manchada, daquelas que a gente não recupera mais. Mas o negativo guardou o sorriso, as roupas coloridas e bem cortadas, os bombons de fruta que o irmão odiava e ela celebrava, pois eram todos dela. Nenhum registro da figura, altura, rosto. Vô Antonio ela consegue desenhar, mesmo depois de tantos anos, já o vô Alfredo sairia um desenho com uma boca sorrindo e um terno colorido. Mas parece ser uma boa recordação.

A menina nunca mais viu os dois. Vô Alfredo morreu e ela nem ficou sabendo. Anos depois deu-se conta, mas não sabe se ele morreu antes ou depois do vô Antonio. Prefere acreditar que foi depois, pois não consegue imaginar vô Antonio, tão alegre, morrendo sozinho em um corredor de hospital. Foi o que ouviu na época, mas nunca quis perguntar. Nem mesmo adulta. O saber não mudaria os fatos. Preferia ao fim dos dias, fechar os olhos e lembrar do perfume, das gargalhadas, da arrumação. Daquelas vidas enfeitadas. Salvar as cortinas fininhas, o bolo de milho, os vestidos da Barbie. O que seria mais importante do que guardar o terno laranja com lenço rosa chá e o terno rosa chá com lenço laranja?

*

A jornalista e escritora carioca Luciana Rangel mora na Alemanha desde 2005. Em sua trajetória, soma experiência na imprensa internacional e nacional. Suas produções sobre história, política e cultura foram premiadas pela União Europeia e TV Globo. Recebeu também o Prêmio Petrobras pelo documentário: Brasil: País da saudade. Como autora, participou da Antologia bilíngue Saudade é uma palavra estragada (Bübül Verlag), Escrever Berlim (Nós) e do Salão de Outono do Maxim-Gorki Theater de BerlimÉ doutoranda do Instituto Latino-americano da Universidade de Bielefeld.

*

Foto ilustrativa: Cartier-Bresson

***

A revista literária São Paulo Review é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade, que precisa de sua ajuda para sobreviver. Seguem nossos dados bancários, caso resolva contribuir com qualquer quantia:

Banco Bradesco

Agência: 423

Conta corrente: 96.981-8

CNPJ:  07.740.031/0001-28

Se contribuir, mande-nos um e-mail avisando. Seu nome, ou o nome de sua empresa, figurará como “Nosso Patrono”, na página ‘Quem somos’ do site. Para anúncio, escreva-nos também por e-mail: saopauloreview@gmail.com

Tags: