* Por Lourenço Cazarré *

A leitura de A Uruguaia, de Pedro Mairal (Editora Todavia, 128 págs.), se estende por três ou quatro horas, que correm rápidas porque se trata de obra divertida e de muitas peripécias. Já a ação do livro se estende por duas dezenas de longas horas. Começa de manhã bem cedo, quando o narrador deixa Buenos Aires e se dirige a Montevidéu onde pensa encontrar e levar ao leito uma bela mulher e sacar 15 mil dólares. E só acaba quando ele, literalmente alquebrado, retorna ao lar.

Sigamos o dinheiro. Lucas, o narrador, é um argentino. Ou seja, habita um país que praticamente não tem moeda há muito. Se possível, todos os argentinos abandonariam seu peso pelo dólar num estalar de dedos. “Era a época do dólar blue, do dólar soja, do dólar turista, do dólar para compra e venda de imóveis, do dólar oficial, do dólar futuro”, diz o narrador/escritor. Recebendo no Uruguai o dinheiro de direitos autorais, vindos da Espanha e da Colômbia, ele conseguiria o dobro do que na sua terra. O sistema cambial argentino, segundo Lucas, funcionava como se “em pleno verão você fosse pago em gelo e proibissem geladeiras”.

O outro motivo, igualmente nobre, é encontrar uma bela garota com que convivera em um convescote literário praiano, no verão anterior, e, se possível – em termos bíblicos – conhecê-la. “O festival estava repleto de garotos bem-nascidos brincando de ser mendigos por um mês. Loiros esfarrapados, rastafáris de universidade particular, semimúsicos, artesãos temporários, malabaristas full time”. Quem é do meio conhece bem a fauna!

O livro é um longo monólogo do narrador/marido, dirigido à esposa, relatando sua odisseia montevideana. Mas o leitor, se quiser, pode até imaginar que está lendo uma carta, o que, talvez, seja mesmo mais adequado. Em meio a descrição dos muitos acontecimentos, surge a vida familiar. As rusgas com a mulher, a trabalheira com a criação do filho pequeno e a vontade de viver da escrita em um país periférico e empobrecido. Mas tudo isso é redigido com leveza e bom humor. Não dê bola para o que está escrito na contracapa. Lá diz que o livro nos ensina “como devemos enfrentar as promessas que fazemos e não cumprimos, as diferenças entre aquilo que somos e o que realmente gostaríamos de ser”. Esqueça! Bons livros não precisam ensinar absolutamente nada.

A verdade é que A uruguaia prende a atenção do leitor não só pelo texto ágil e brincalhão. Há condimentos meio policialescos, digamos. Há ganchos de suspense. Será que Lucas vai mesmo unir-se à bela garota de ascendência basca? Será que retornará à sua Tróia levando o cinturão em que carrega o tesouro ianque? Há até mesmo o condimento da violência. Que não é, claro, uma violência tipo brasileira: corpos queimando dentro de um micro-ondas improvisado com pneus ou sendo retalhados por rajadas de AK 45. Não! É violência uruguaia. É algo que no Brasil não renderia nem Boletim de Ocorrência.

O dia é movimentado em Montevidéu. Quem conhece a bela capital da nossa antiga província cisplatina vai curtir bastante. A larga rambla à beira do rio-mar, as ruas arborizadas e silenciosas, bares e restaurantes com terrazas e o estrambótico Palácio Salvo. Surge até uma banda do roque só de mulheres, a Cita rosa (brincadeira com o nome do maior cantor uruguaio de todos os tempos, Alfredo Zitarrosa).

Os argentinos, diz o escritor, gostam de pensar que o Uruguai é uma espécie de província deles, mas na outra margem do rio. Não é. É uma nação em que as notas de dinheiro ostentam fotos de poetas e pintores. O Uruguai é um pequeno país, tradicionalmente dirigido por políticos honestos, entalado entre duas grandes nações frequentemente comandadas por pessoas que amam outro tipo de valores.

O narrador é um sujeito de meia idade que vive de bicos em torno da farinha pouca da literatura – feiras, seminários e aulas de escrita criativa. É alguém de boa extração. É um argentino tipo exportação: Tem todos os dentes no lugar e ostenta uma musculatura cevada em clubes e academias. “O dinheiro estava na minha infância, me cercava, me cobria de roupa boa, quadras de um bairro seguro na capital, alambrados de fim de semana, cercas de clubes, ligustros bem podados, barreiras que se erguiam para eu passar. E depois eu me dera o luxo de dar uma de desajustado, de artista sem vocação empresarial, de boêmio. Era um luxo a mais. O rebento sensível da lata burguesia”.

Com nos é apresentada a mocinha, Magalí Guerra, pelo narrador indeciso? “Era uma patricinha meio safada ou talvez meio vagal? Dava uma de suburbana ou era mesmo?”. Era linda, mas ele não sabe explicar o motivo. Talvez pelo nariz. “Era um desses narizes da banda Oriental, bem postos, com uma leve inclinação, ponte alta, como o erre do nome dela, o desafio ETA de sua linhagem basca no nariz… E os olhões verdes, a boca do beijo ininterrupto?”

O final do livro nos guarda duas grandes surpresas amorosas. Os cínicos podem, e certamente farão isso, até dizer que se trata de concessões à modernidade comportamental. Meras concessões a um tempo em que nada mais é surpreendente. Pode até ser. Mas o livro, que começou e andou bem, também é fechado com perícia por Pedro Mairal.

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A uruguaia, de Pedro Mairal (Editora Todavia, 128 págs.)

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Lourenço Cazarré é escritor; tem cerca de quarenta livros publicados, a maior parte deles voltada ao público infanto-juvenil, sendo inclusive agraciado com o 41º Prêmio Jabuti em 1999, entre mais de vinte prêmios literários.

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Na foto, Pedro Mairal

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