* Por calí boreaz *
toda varanda quer ser um navio
escrevo como quem se abrevia
às coisas:
vou ali e já volto
só uma saidinha
pra arejar, ar
no dia em que sumi no mundo
(nasci de parto mortal e mais
ninguém me viu)
ali comecei discreta a construir uma varanda
no planeta
abenluada
solidão
repente
a varanda do planeta
ficou escuramente maior
maior que o próprio planeta
não cabe na solidão
nem mesmo nestas
palavras verticais com que vou
vasculhando
oxigênio enquanto
empurro com todas
as fraquezas o portão
de parto que ainda me aparta
dos olhos que me escrevendo
me expandiram
abensomada
ausência
dia destes ainda sou capaz de zarpar, ar
com eles
numa distração do silêncio
na varanda desarvorada
enfim feita navio
***
clandestinos
em toda a impermanência
/no açúcar violento do crepúsculo
na pétala final que pondero
na intenção desfeita do músculo
tombamos longamente
da berma espumaçada do rochedo
ao tecido seco da nuvem
quem de nós perfumou a Terra
da terra ao galho falho
da fogueira ao cometa
no giro anti-horário
da roda da bicicleta
intransitamos ao contrário
estremecemos extremos
a soprar a luz dos movimentos
e no seu transbordamento \
permanecemos
***
fóton
isso era no tempo em que
a luz de maio entrava
pontualmente
às quatro da tarde naquela
avenida da Urca com aquela
soberba dourada bêbeda de américa
e se refratava nos recortes
insuspeitos dos troncos dos coqueiros
do alcatrão malemolente
para finalmente se alojar
em algum indício corpóreo
de uma microexplosão
e durava quatro minutos
precisamente — a luz dos maios rotos
e logo mais à frente
o verde dos morros
a respirar nuvens
isso era no tempo
em que maio explodia e éramos jovens
de nós — e logo esplendia
pelos ralos tudo que escrevíamos
com luz
***
hora de vagar
substrato da poesia
uns restos de tarde
ainda boiando
sobre o precipício ansioso
das horas
a desoras
um exílio costeiro
na costura de um sonho
sob o ato da poesia
(…)
dez horas
um vago lume se acende e eu vagamente
subo e trato da poesia
***
fortaleza
ver-te é o poema — a ver se te vê
por tempo que chegue para te ver
por trás dos olhos quando ver-te
for invisível
ver-te ouvir-te tocar-te imensa-me
há vento em amar-te e isso dispersa-me
sangue para um lado átomos para outro
sou o desencontro do meu corpo
clamando que o reúnas em maior beleza
obra de arte amar-te
na infinita-metragem dos turning points
que afortalezam o saber-me tua
ainda que
no buraquinho discreto que faço na noite
mas é nesse buraquinho que se acoita o ato-lua
de me debruçar sobre o mundo
e sobre o tempo — e me rir deles
porque te conheci
*
calí boreaz nasceu no outono, em Portugal. de origem parte do Ribatejo, parte da Beira Baixa, estudou Direito em Lisboa em meio às noites de fado, depois aventurou-se a leste, viveu um tempo em Bucareste, onde estudou Língua e Literatura Romena, e também Tradução Literária, até que atravessa o Atlântico rumo ao sul, no virar de 2009 para 2010, para viver no Rio de Janeiro, onde estudou [e continua a estudar, e a realizar] o ofício do Teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O Regresso do Hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Os poemas acima são de seu livro de estreia, outono azul a sul [2018], que marca sua luso-brasilidade. A obra tem uma extensão fotonarrativa no instagram @caliboreaz