
> Das transposições – ou de quando o Velho Chico chegou à Parahyba
I
de transposições também se faz o poema. transposições sanguíneas, líquidas, de luares e quasares loucos, sem nenhuma mutilação, com olhos clareados de lucidez de furar as pétalas de fogo do sol. transposições de abismos irreconciliáveis, onde vultos e centelhas se digladiam impedidos de se alçarem à alegria.
II
diga-se o que se quiser, mas hoje, agora, para muita gente, é dia de imensa alegria. dia que um rio se transpôs em muitos outros rios: rio de riso, rio de possível fartura, rio cujas águas estancarão a fome e a secura, rio de muitos braços a abraçar tantas terras e gentes, rio que enfim saiu dos papéis e furou as represas da má-vontade e irrigou a lama da politicagem. rio que, de seus muitos afluentes, desbaratina a “opinião” de muita gente que se diz mais “esperta” e, sempre em riste com suas “críticas”, acaba se afogando nas próprias águas por não sentir o quanto de mar tem um rio, o quanto de fonte, de fundura, de fluxo tem um rio que se sabe e que se expande para além de si mesmo, de seu correr e correnteza, até que chegue finalmente a estancar a sede, o cinza da paisagem, e possa trazer o colorido e inclusive o motivo de se fazer festas para se cantar às colheitas e ao mar imenso de vida que o rio enseja.
III
que o poema rio não se restrinja à sua forma, às suas letras, senão, mas principalmente, à sua vida e alegria, imensamente! que, por onde passe, irrigando o riso e a lavoura e as terras, passe sempre mais vicejando os frutos e as sementes e acabando com o que outrora foi – ou vige ainda? – uma indústria da fome e da seca.
IV
não é o mar o único caminho do rio, ou seja, para onde o rio se encaminha? pois bem, gente é rio e também é mar. gente também tem suas marés baixas e altas, cuja natureza profunda subjaz placidamente às ondas tantas e recomeçadas. portanto, que o rio corra aos mares das gentes e as gentes aos mares amares dos rios, e não só aos mares, mas aos lagos e açudes, poços e torneiras, cisternas e arroios, sebes e culturas unindo o que antes fora rachadura na vastidão vertiginosa da secura dos chãos.
V
rio que é rio campeia agrestes, vilas, vielas, cânions, cidades e megalópoles. campeia altos vales e verões, serras e grotões, caatingas, matas e sertões. rio que é rio elide distâncias entre mar e sertão, entre foz e seu desaguar, elide fontes e visagens de preamar. rio elide rio quando já se é mar, assim como a gota d’água, quando nele atirada, torna-se mar. mar de muito mais amar.
VI
como rio também se ergue o tempo. civilizações ao seu redor nasceram. por ele também escorreram abismos e mortes, avermelhando-o de sangue e dor. mas este rio que ora se transpõe, esse ser tão e tao, tão fluido, tão fluxo, tão vivificador e irrigador de potências, é o que dará a acontecer o que próprio é do ser do rio. todavia não se faça do rio uma algaravia torta, torpe de interesses, pois ele pode se voltar contra quem queira interromper seu curso.
VII
é preciso pois muita arte e coração para mudar o curso de um rio sem que o mate e mate quem nele vive e dele precisa e precisava.
rio é vida que enseja vidas, vidas outras. outramentes.
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Luiz Alberto Eloy Villar Dantas é ator (já atuou em vinte peças, em quase trinta anos de carreira) e poeta. É natural de Campina Grande (PB) e cursou Letras por dois anos na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Em 2002, no Rio, estudou na Escola de Teatro do Tablado, teve uma rápida passagem pelo Nós do Morro, fez cursos na Casa da Gávea, participou de montagens na UFRJ e na UniRio e foi integrante por seis anos da Cia. Epigenia Arte Contemporânea. Fez algumas campanhas publicitárias, trabalhou como modelo vivo por quatro anos no curso de Escultura da Escola de Belas Artes da UFRJ. Em 2009 participa, com o Coletivo Cilindro, da X Bienal de Havana, em Cuba. Em São Paulo, passou pelo grupo de performance Desvio Colettivo, pelo Núcleo de Artes Cênicas, e fez a dramaturgia, numa montagem na USP, de uma novela de Raimundo Carrero. Há dois anos vem fazendo locuções/narrações de clássicos da filosofia e da literatura mundiais, já tendo narrado mais de trinta títulos. Gosta de dar umas boas sopradas em seu trompete, cujo nome batizou de “Miles Baker José” e, em sua gaita, Athena. Esta é sua estreia em livro, que sai em breve pela Folhas de Relva Edições.