Hilda Hilst se perguntava o tempo todo. Como várias das estranhas figuras que passeiam pelos seus livros, ela era movida principalmente por interrogações. “Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta?”, coloca uma de suas personagens, ecoando uma questão que, de certo modo, resume tanto a sua literatura quanto a sua biografia.
Desde pequena, ela se destacou pela capacidade de questionar. No Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, onde estudou a partir dos 7 anos, sempre tinha perguntas a fazer – até mesmo quando a professora colocava problemas comuns de aula de matemática:
— Tenho três galinhas. Uma, enquanto eu estava caminhando, se perdeu. A outra morreu. Quantas galinhas sobraram?
A garota era a primeira a rebater:
— Mas por que a galinha morreu? E a outra? Como é que alguém pode perder uma galinha? Quem estava tomando conta dela não sabe dar explicações?
Na rotina da escola católica, ambiente recriado muitas vezes em seus escritos, nem as orações se salvavam das dúvidas. “Virgem santíssima, Virgem antes do parto, Virgem no parto, Virgem depois do parto”, rezavam as meninas, conduzidas pelas irmãs. A pequena Hilda perguntava:
— O que isso quer dizer? O que é virgem? O que é parto?
— Isso é para decorar — respondiam as irmãs.
Suas perguntas eram recebidas como uma afronta à religiosidade. Com seu desejo precoce e irrefreável de a tudo conhecer, Hilda desafiava o que por vezes se entende como a verdadeira fé – acreditar sem compreender. Sua heterodoxia, porém, não podia ser tomada como heresia, embora seja verdade que mesmo sua relação com Deus fosse muito especial e reinventada – em seus livros, ele recebe nomes tão surpreendentes como Tríplice Acrobata, Lúteo Rajado, Grande Incorruptível, Sorvete Almiscarado… Assim como recriava sua ideia de Deus, a escritora associava a capacidade de questionamento a uma espécie de misticismo: “Todo ser que se pergunta em profundidade passa a ser religioso”, acreditava.
A relação incomum que Hilda mantinha com a religião ressurge na foto da página ao lado, da década de 1960, quando mudou para a Casa do Sol, em que está vestida de freira. Sobre a blusa castanha, leva um crucifixo. Na cabeça, um lenço branco serve de véu.
Posa para um registro feito, provavelmente, pouco tempo depois da mudança para a propriedade em Campinas, no interior de São Paulo, onde viveria até sua morte, em fevereiro de 2004.
É fácil acreditar na verdade dessa imagem. A casa foi desenhada pela escritora com inspiração na arquitetura de mosteiros carmelitas – ordem religiosa que tem no hábito marrom a sua vestimenta característica. Na expressão de Hilda, não há qualquer traço de jocosidade. Embora ainda jovem, ela já não encarna a mulher atraente de vinte e poucos anos das fotos mais antigas, da década de 1950, em que aparece quase sempre lânguida, com cabelos loiros bem penteados e roupas elegantes.
Em certo sentido, ao vestir-se de freira e posar em frente à casa que construíra em lugar isolado, Hilda anuncia uma conversão. Ela se retira da badalada vida na capital paulista, com suas viagens, festas, jantares e, sobretudo, seus amores – a jovem poeta teve casos ou se relacionou com muitos homens da alta sociedade paulistana, nos anos 1950. No interior, a escritora “puxa os cabelos para trás” e “começa a usar batas e a se enfear”. Na Casa do Sol, inicia seu sacerdócio: uma vida inteiramente dedicada à criação de sua literatura.
Mas poucas vezes esse ministério se tornou de fato reclusão. Hilda viveu rodeada de amigos, recebeu figuras como Caio Fernando Abreu, teve intensos relacionamentos amorosos e experimentou formas inusitadas de tentar o contato com o outro. Ela nunca poderia ter sido santa. Gostava demais dos prazeres terrenos, e sua grande preocupação era a obra que deixaria. Sabia que era grande, embora não tenha tido tempo de ver o importante lugar que passaria a ocupar no cânone da produção literária brasileira. Construindo a si mesma à imagem de sua obra, ela se tornaria, também, uma figura emblemática, espécie de retrato da escritora excêntrica.
A partir de sua conversão, a “aflição de ser eu e não ser outra”, descrita em poema em 1959, deixou de perturbá-la: com sua capacidade de pensar com liberdade e antecedência, sabia que toda a sua vida – desde a infância em Jaú e Santos – seria uma caminhada em direção ao lugar onde queria e deveria estar.
Hilda Hilst nunca teve medo de admitir o que achava do trabalho ao qual dedicou toda uma vida: “Eu me acho uma escritora maravilhosa. Uma prosadora, poeta e dramaturga de primeira qualidade. Eu gosto de saber que me propus e fiz esta tarefa na Terra”.
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O trecho acima faz parte do livro Eu e não a outra – A vida intensa de Hilda Hilst, de Laura Folgueira e Luisa Destri (Editora Tordesilhas, 232 págs.)
Sobre as autoras:
Laura Folgueira é tradutora e pesquisadora de literatura brasileira. Em 2017, concluiu um Mestrado em Letras e Estudos da Tradução na Universidade de São Paulo (USP), dedicado a pesquisar a obra de Hilda Hilst.
Luisa Destri é pesquisadora, professora, é a coautora de Por que ler Hilda Hilst (Globo, 2010) e organizadora da antologia Uma superfície de gelo ancorada no riso (Globo, 2011), com escritos da mesma autora. É mestra em Teoria e História Literária pela Unicamp, com a dissertação De tua sábia ausência – a poesia de Hilda Hilst e a tradição lírica amorosa (2010).