* Por Itamar Vieira Junior *

Quando sou convidado a escrever ou falar sobre a literatura, penso comigo mesmo: lá vem ela de novo, desafiando minha razão mais uma vez, me provocando a explicar porque estou aqui e não pintando um quadro, compondo um jardim ou cozinhando pratos diferentes. Passado tanto tempo, e tendo escolhido um caminho de formação que poderia ter me levado para longe da arte literária, me vejo face a face com ela, mais uma vez, tentando justificar por que a persigo quase que instintivamente – ou será que ela me persegue? Por que ainda que o mundo pareça mouco e cego sou invadido pela vontade de contar algo que comunique de maneira única a nossa humanidade?

Tudo isso me fez refletir sobre um evento recente em que me vi, novamente, envolvido a explicar a mim mesmo o porquê escolhi a literatura para dar meu testemunho sobre o que me inquieta.

Enquanto escrevia minha tese de doutorado e estava a meio caminho da conclusão – e eu lia e relia o texto de forma exaustiva – sentia que havia algo que não conseguia exprimir naquela profusão de história, ação e teoria. Não tendo formação acadêmica no campo das Letras – também não sei em que medida isso ajudaria – e estando no corpo das Ciências Humanas, só poderia cogitar escrever a tese com uma “linguagem acadêmica”. Há pesquisadores corajosos que subvertem parte dos dogmas acadêmicos às suas necessidades, abrindo possibilidades que a linguagem formal das ciências – pelo menos nas universidades – parece tolher. Mas estava claro para mim que eu não fazia parte desse universo de pesquisadores “corajosos” – não sabia, como ainda não sei, se me tornei de fato um pesquisador. Nem pretendia em meu íntimo perseguir esse objetivo, não tinha sequer um caminho planejado para minha vida pós-academia. Queria o caminho mais fácil, queria apenas escrever algo sem me desvirtuar do que quase sempre se espera de um pesquisador: um texto claro e formal, com normas e padrões que facilitem sua utilização e réplica depois.

Mas onde estava a inadequação, o inexprimível que me perturbava, como se a linguagem não fosse capaz de transpor uma ideia? Eu estava enredado numa experiência complexa de convivência com uma comunidade quilombola, uma experiência com uma carga quase épica, e havia me proposto a escrever uma etnografia – que dentro das Ciências Humanas, seria o campo que guarda mais proximidade com a arte literária. Inclusive, nos cursos de etnografia, somos instados a ler literatura de ficção para adquirir a capacidade de redigir textos mais desenvoltos e com capacidade de prender a atenção do leitor. O texto que escrevia deveria estar baseado na convivência e memórias de inúmeros personagens, corroborado com pesquisas históricas sobre a formação daquela comunidade.

Mas o que eu não conseguia exprimir naquele texto, por mais que me esforçasse em fazê-lo vivo? O que desejava era compor uma narrativa próxima à vida, não de um grupo que leria aquela obra com interesses bem específicos, mas de toda e qualquer pessoa que, por qualquer motivo, o encontrasse. O inexprimível era a ausência de movimento, o movimento que salta das páginas de uma obra, mesmo quando já se passou muito tempo. Quem duvida que Dom Casmurro atravessará a vida das futuras gerações como o enigma que nos atravessa hoje, mesmo passadas tantas décadas de sua publicação? Quem duvida que as histórias daquelas vidas poderiam ser contadas com a linguagem de um poderoso romance?

Naquele momento, refleti, que um texto acadêmico seria sempre um texto datado, sempre teria um “prazo de validade” – com raras exceções. Seria um texto seletivo, incapaz de atingir todo e qualquer público, por mais que me esforçasse em fazê-lo dessa forma. A própria dinâmica da ciência estimula redefinições, validações e superações a partir de novos métodos baseados no escopo teórico próprio de seu tempo. Talvez por isso pareça prescindir de vida sob um olhar mais superficial. Diante desse dilema, percebi que desejava, embora não pudesse materializar esse desejo porque essa não era a proposta, transformar aquele texto numa narrativa literária. Por mais que me esforçasse – e acho que de alguma forma levei a literatura para a linguagem rígida das ciências – aquela narrativa nunca teria o movimento que almejava: o movimento da arte literária que melhor assimila o movimento da vida.

O conflito não estava entre essas duas formas de narrar, afinal, essa não era a razão de ser de meu incômodo. O conflito estava em definir qual a forma que tem mais chances de sobreviver ao longo do tempo (esse sentimento tão humano de perseguir o eterno). A arte literária pode se ocupar de uma época, pode até ser uma obra datada, mas preserva a liberdade de narrativa. Uma mesma história pode ser narrada de inúmeras maneiras, e sempre será uma obra nova. O alcance poderá ser atemporal, porque a narrativa literária é única forma que, em sua essência, se supõe livre para expressar os fluxos da vida, propondo formas fluidas e menos rígidas, que se assemelham mais aos contornos da história humana. Quem nunca passou de mão em mão um livro que lhe tocou, e ouviu sobre os mais diversos sentimentos suscitados em pessoas de origens, gêneros, credos e histórias diferentes? Que poder é esse que a arte literária parece guardar? Que poder seria esse de comunicar a experiência humana de forma mais exitosa que um texto que não seja considerado arte?

A arte quase sempre está fundamentada numa profunda compreensão do mundo vivido. E hoje percebo que é essa a compreensão que persigo – ou me persegue. Mas não há uma única resposta. Nem era minha intenção esgotar o tema aqui. Há inúmeros ensaios, textos científicos e literários que, se citados, reduziriam a um exemplo essa experiência tão particular que vivi. Seria um contrassenso, depois de tudo, me render a um pensamento elaborado e deixá-lo que substituísse, em parte, a surpresa própria da experiência, o movimento primevo que parecia embotar minha criação quando tentava escrever algo que gostaria que fosse arte literária.

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Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É autor dos livros de contos Dias (Caramurê, 2012) e A oração do carrasco (Mondrongo, 2017)

Foto ilustrativa: Quilombolas no Nordeste do Brasil

 

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