C oraline analisou as possibilidades com cuidado, pegou o pedaço de papel e a caneta e seguiu em sua expedição para desbravar o apartamento.

(…)

Das portas que contou, treze delas abriam e fechavam. Mas tinha uma outra — a maior de todas, talhada em madeira escura num canto afastado da sala de visitas — que estava trancada.

— Para onde dá essa porta? — perguntou à mãe.

— Para lugar nenhum, querida.

— Mas tem que dar em algum lugar.

A mãe balançou a cabeça e disse:

— Venha. Vou mostrar para você.

Ela pegou um molho de chaves na parte de cima do batente da porta da cozinha.

Olhou uma por uma e escolheu a chave mais velha de todas, a maior, mais escura e mais enferrujada. As duas foram para a sala de visitas, e a mãe destrancou a porta com a chave.

A porta abriu.

Sua mãe estava certa. Não dava para lugar nenhum. Ela se abria para uma parede de tijolos.

(…)

Naquela noite, Coraline ficou acordada na cama. A chuva já tinha parado, e ela já estava quase dormindo quando alguma coisa fez t-t-t-t-t-t. Ela então se sentou.

O barulho continuou creeee…

…eeeeque.

Coraline se levantou da cama e foi até a porta do quarto, olhando pelo corredor, mas não viu nada de estranho. Ela seguiu em frente. Do quarto dos pais ouviu um ronco baixo (era o pai) e um resmungo sonolento (era a mãe).

Coraline se perguntou se estaria sonhando, ou seja lá o que aquilo fosse.

 

Algo se moveu.

Era mais que uma sombra, e escapuliu pelo corredor escuro, como um pequeno pedaço de noite.

Coraline torceu para que não fosse uma aranha. Elas lhe deixavam muito desconfortável. A forma preta entrou na sala de visitas, e Coraline, um pouco nervosa, a seguiu.

O cômodo estava um breu. A única luz vinha do corredor. Parada à porta, Coraline lançava uma sombra enorme e distorcida no chão — ela parecia uma gigante esbelta.

Quando viu a forma preta sair lentamente de debaixo do sofá, Coraline se perguntou se deveria ou não acender a luz. Ela parou por um instante, e então correu na ponta dos pés até o canto oposto da sala.

Não havia móveis naquela parte.

Coraline acendeu a luz.

Não havia nada ali. Nada além da velha porta que se abria para a parede de tijolos.

Ela tinha certeza de que a mãe havia fechado a porta, mas agora ela estava ligeiramente aberta. Só uma fenda. Coraline chegou mais perto. Atrás da velha porta de madeira, só uma parede de tijolos vermelhos.

Coraline a fechou, apagou a luz e foi para a cama.

Ela sonhou com formas pretas que deslizavam de um lugar para outro, evitando a luz, até que todas se encontraram sob a lua. Pequenas formas pretas com olhinhos vermelhos e dentes amarelos afiados.

E começaram a cantar:

Somos muitos para contar, difíceis de ver

Somos difíceis de ver, muitos para contar

Estávamos aqui antes de você nascer

E estaremos aqui quando você findar

As vozes eram estridentes, sussurradas e meio irritadiças. Coraline ficou incomodada.

Depois sonhou com alguns comerciais de TV, e então não sonhou mais.

*

Coraline, de de Neil Gaiman (editora Intrínseca, 224 págs., tradução de Bruna Beber)

***

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