* Por Juliana Braga de Mattos *

Sempre considerei o ato de compartilhar memórias duplamente envolvente, por nos oferecer não apenas a possibilidade de adentrar as minúcias de experiências vividas (e selecionadas) pelo nosso interlocutor, como por abrir uma série de autorreflexões, em busca de conexões ou estranhamentos em relação à narrativa apresentada por este alguém. Ao mesmo tempo, é admirável a generosidade que podemos encontrar em tais relatos, já que o ato de desenredar o novelo de nossas subjetivas percepções sobre a existência exige uma considerável entrega emocional.

Na literatura, o gênero biográfico é testemunha deste amplo e sedutor caráter das narrativas memoriais – que, inúmeras vezes, alinhavam os contextos emocionais aos cenários históricos das trajetórias dos biografados. Arrisco dizer que, neste voyeurístico interesse leitor, de alguma forma nos coligamos com a transcendência que marca a passagem e efemeridade de nossa existência em registros que, pela oralidade ou pela escrita, poderão então atravessar os tempos.

Ao receber o volume de fôlego escrito por Paula Macedo Weiss, me encontrei novamente diante destas questões que tanto me encantam. No emaranhado de reflexões sobre sua vida familiar, ladeada por situações bastante específicas do contexto de sua infância e juventude vividas no Brasil, a autora não hesitou em entremear uma narrativa que oscila entre fatos de sua percepção individual e as da coletividade que marcaram o momento político do país, majoritariamente entre os anos 1960 e 1980. Desafiadora escolha, quando sabemos que a universalidade é uma quimera, e que as percepções de mundo respondem às nossas particularidades, dadas pelas lentes que nos são oferecidas em diferentes contextos sociais.

Mas há algo muito significativo neste disparo que nos apresenta o texto. O fato de que, para além do legítimo desejo de expressar-se em sua singular individualidade, Paula sensivelmente busca “alertar-se-nos” a todos que a leem sobre a fragilidade de uma das mais importantes conquistas do mundo contemporâneo: a democracia. Ao mesclar as condições (e algumas restrições) vividas no seio familiar, a aspectos muito concretos da situação sociopolítica atravessada no país no contexto de uma ditadura militar, Paula evoca, em inúmeras passagens, o valor da liberdade e da justiça social como elementos fundamentais para uma plena existência (para além das agruras que, solitária e individualmente, teremos de enfrentar na vida).

Impossível escapar aqui à constatação que também dispara a escrita do livro – o fato de que, na aurora dos anos 2020, vivemos, no Brasil e em muitos outros países, uma onda de retrocessos às conquistas arduamente batalhadas por inúmeras pessoas em busca da liberdade, ou das liberdades. Já que, estas, deveriam ser muitas em contextos democráticos de fato.

Entre tais reflexões e reminiscências, ressoa certamente um dos impulsos mais nobres de sua escrita: a corajosa compreensão de que, frente ao privilégio da consciência crítica, não podemos nos eximir e nos calar. E que sim, ao compartilhar nossas experiências pessoais, podemos acender uma chama sobre as sombras que insistem em habitar o mundo.

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Entre nós, de Paula Macedo Weiss (Folhas de Relva Edições, 210 págs.)

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Para comprar, entre no site da editora: https://www.editorafolhasderelva.com.br/entre-nos

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Na foto, movimento Diretas Já, um dos eventos políticos retratados no livro. 

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Juliana Braga de Mattos é historiadora e museóloga. Atua há 20 anos no Sesc São Paulo, sendo atualmente responsável pela área de Artes Visuais e Tecnologias.

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