* Da redação *

Um dia antes de ser crucificado, em sua cela, Jesus aguarda sua morte. Nesses últimos momentos de sua vida, lembra-se de detalhes do julgamento pelo qual acaba de passar. Recorda-se dos depoimentos daqueles que foram agraciados por seus milagres, mas que agora já não veem neles tanta vantagem assim. Sem conseguir dormir, Ele se lembra também de como chegou até ali, confessa ter medo da morte e reflete sobre os três pilares da humanidade, aqueles que resumem o sentido de encarnar e ser humano: amar, morrer… e ter sede. Este é o pano de fundo de Sede, romance da escritora belga Amélie Nothomb.

Narrado em primeira pessoa, a obra trata das memórias de Jesus a respeito de seus últimos dias na terra, seu sofrimento e sua humanidade, e menciona, de uma perspectiva inovadora, diversos personagens bíblicos, como Maria, Maria Madalena, Pedro e Judas, ponderando virtudes e falhas. “Esclareço esses pontos porque não é o que será escrito nos Evangelhos. Por quê? Ignoro. Os evangelistas não estavam ao meu lado quando aconteceu. E não importa o que possam ter dito, não me conhecem. Não estou bravo com eles, mas nada é mais irritante do que as pessoas que, sob pretexto de amar você, têm a pretensão de conhecer você de cor”, relata Jesus no livro.

Amélie Nothomb não é teóloga, portanto, o objetivo deste lançamento não é ser um registro histórico ou hagiográfico, mas um poderoso exercício de ficção com alguns dos personagens mais conhecidos da humanidade. Celebridade literária na Europa, ela é considerada excêntrica por alguns, e uma personalidade única por outros. Seus livros costumam tratar de assuntos polêmicos, colocando em xeque algumas das concepções mais convencionais e conservadoras. Sede é, segundo a própria autora, o livro de sua vida: tudo o que ela fez culminou na escrita desse breve romance.

Amélie Nothomb é uma das maiores figuras da cena literária da Europa. Belga, é best-seller em diversos países. Autora prolífica, publicou um livro por ano desde seu primeiro romance, Hygiène de l’Assassin (1992). Seu enorme sucesso valeu-lhe a nomeação de Comandante da Ordem da Coroa, e o rei Filipe da Bélgica ofereceu-lhe a concessão do título pessoal de baronesa. Em 2015, foi eleita membro da Real Academia de Língua e Literatura Francesa da Bélgica. Em 2021, recebeu o prestigioso Prêmio Renaudot com seu livro Premier Sang.

Leia trecho da obra:

Ele tinha razão. Até aquela noite, eu não sabia realmente o que era o medo. No Jardim das Oliveiras, na véspera de minha prisão, foi a tristeza e o desamparo que me levaram às lágrimas.

Agora, eu descobria o medo. Não o medo de morrer, que é a abstração mais comum, mas o medo da crucificação: um medo muito concreto.

Tenho a convicção incontestável de ser o mais encarnado dos humanos. Quando me deito para dormir, essa simples entrega me causa um prazer tão grande que preciso me conter para não gemer. Tomar o mais humilde ensopado ou beber água, mesmo que não esteja fresca, arrancariam-me suspiros de volúpia se eu não me controlasse. Já me aconteceu de chorar de prazer ao respirar o ar da manhã.

O oposto também é verdadeiro: a mais insignificante das dores de dente me aflige mais do que o normal. Lembro-me de maldizer minha sorte por conta de uma farpa. Escondo tanto essa natureza dolorida quanto a anterior: isso não se enquadra com o que devo representar. Um mal-entendido a mais.

 

Em trinta e três anos de vida, pude constatar: o maior feito de meu pai é a encarnação. Que uma potência desencarnada tenha tido a ideia de inventar o corpo permanece um golpe de mestre. Como o criador não seria ultrapassado por essa criação cujo impacto ele não compreendia?

Tenho vontade de dizer que é por isso que ele me concebeu, mas não é verdade.

Teria sido um bom motivo.

Os humanos reclamam, com razão, das imperfeições do corpo. A explicação é óbvia: de que valeria uma casa desenhada por um arquiteto que não tivesse residência? Só se atinge a excelência naquilo que se pratica no dia a dia. Meu pai nunca teve corpo. Para um leigo, acho que se saiu muito bem.

Meu medo desta noite foi uma vertigem física com a ideia daquilo que estava prestes a suportar. Espera-se que os supliciados se mostrem à altura. Quando não urram de dor, fala-se de sua coragem. Suspeito de que se trate de outra coisa: verei o quê.

Eu temia os pregos que atravessariam minhas mãos e meus pés. Era estúpido: havia certamente sofrimentos muito mais intensos. Mas esse, ao menos, eu podia imaginar.

O carcereiro me disse:

— Tenta dormir. Amanhã, vais precisar de toda energia.

Diante do meu ar irônico, ele recomeçou:

— Não rias. É preciso ter saúde para morrer. Estás avisado.

Exato. Além disso, era a minha última chance de dormir, algo que tanto aprecio. Tentei, deitei-me no chão, entreguei meu corpo ao repouso: ele não quis saber de mim. Cada vez que fechava os olhos, em vez do sono eu encontrava imagens aterrorizantes.

*

 

Sede, de Amélie Nothomb (Editora Planeta | Selo Tusquets, 128 págs.)

 

 

Tags: , , ,