* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Vou entrar em um assunto delicado.  Não com a intenção de julgar regras, mas para trazer uma reflexão a nós LGBT+ sobre as armadilhas que nos rondam e que podemos cair com facilidade que leva rapidamente ao esvaziamento de lutas políticas importantes à comunidade. Vamos lá. Há uma expressão nova circulante na nossa comunidade que, em princípio, faz gargalhar: “marmita de casal”. A expressão significa a inserção de um terceiro, apenas para uma transa esporádica, com um casal. É aquele lance em que a balada que o casal vai junto e termina em casa com mais alguém que se conheceu na boate. É o que conhecemos, pelo menos há algum tempo atrás, como “ménage à trois”. O termo foi atualizado e, acredito, que o significado também. O termo mais antigo remete ao combinado de três pessoas para uma aventura sexual ou ainda mais profunda afetiva-sexualmente. No atual, a “marmita” não foge muito essa regra, mas permanece no combinado de uma transa com o casal e nada mais. Até aí parece tudo bem se a gente não tiver o cuidado com as violências da gramática que estão por detrás da escolha de uma ou outra expressão para “brincar” com as situações. Marmita remete aquele recipiente que se prepara com um pouco de comida que sobra, que resta, rejeitada, que ninguém mais quer, que se leva descuidosamente para comer mais tarde ou no dia seguinte, ou levar para casa para comer requentada, de qualquer jeito. Intencionalmente ou não a adoção desse termo para designar um corpo com quem se vai relacionar traz ideias que podem ser profundamente pejorativas, uma ideia de corpos consumíveis em um mercado de desejos, e esvaziar reivindicações importantes, por exemplo, da questão do poliamor. O que quero colocar à mesa com todo esse preâmbulo é problematizar o nosso potencial enquanto comunidade LGBT+ como propositores de novas formas de existência, atentos, contudo, para o sequestro dos relacionamentos na reprodução de violências heteronormativas. É o mesmo caso da expressão “sugar daddy” para homens mais velhos que no imaginário LGBT+ só servem para bancar financeiramente um rapaz mais jovem e é incapaz de despertar desejos e só o dinheiro que o salva da solidão compulsória. Passar dos 40 anos na comunidade LGBT+ é quase um castigo e existências são estigmatizadas fortemente por uma questão natural da vida. Ser a “marmita do casal” não está muito distante de ser um (mais um) estigma na comunidade LGBT+ que insiste em aderir à comercialização neoliberal de corpos e desejos em uma reprodução do modelo heteronormativo de relacionamento. Tais posturas transformam lutas políticas, como a do poliamor legítimas a nós também, aos olhos do mundo, como formas loucas e não legítimas de construir os nossos modelos de relacionamentos diante da tradicional família brasileira.

A crítica vai ao uso das gramáticas por nós na tentativa de uma consciência em não dar munição aos que nos oprimem.

Em contraponto ao uso banal das gramáticas, há projetos que podemos aprender mais na construção de pontos de entendimento. A literatura é um deles. Nesse sentindo, o livro “Vinco” do escritor Thiago Loureiro (2021) pela editora Viseu tem uma proposta interessante para discutir sobre as formas de relações afetivo-sexuais que podemos estabelecer com outros. O livro de Loureiro brinca entre o real e a ficção. A personagem central é Otávio, um jornalista que presencia um fato (real) que foi o embate dos protestos contra a filósofa Judith Butler quando esteve no Brasil para uma série de palestras para o lançamento de um dos seus livros sobre teoria política em 2017. Otávio, personagem ficcional de Loureiro, observa atônito os dois lados da gritaria. De um lado estão os grupos que defendiam as ideias sobre gênero e sexualidade da pensadora, de outro os grupos de reacionários, conservadores e religiosos que reivindicavam o cancelamento das palestras e presença de Butler em território nacional alegando que Butler era a bruxa malvada e idealizadora da ideologia de gênero que tem a intenção de consumir e destruir as criancinhas e a família brasileira. A partir desse fato, Loureiro constrói “Vinco” como uma verdadeira odisseia pessoal e profissional de Otávio em buscar histórias de “casais homossexuais” para entender como são estabelecidas as relações afetivo-sexuais poliamorosas deles. Assim, Otávio vai mergulhando nas mais diversas experiências desses casais e nos trazendo os relatos de maneira deliciosamente didática e surpreendendo as pessoas leitoras com as camadas de que as relações afetivo-sexuais podem ser mais complexas do que o senso comum pode imaginar.

Loureiro, como bom pesquisador que é, traz nas personagens (que são transposições de depoimentos de pessoas reais) a experiência real das relações afetivo-sexuais do movimento poliamor e da não-monogamia como uma discussão política séria de fato, como nas palavras de Gonçalves (2021), que “a diferença entre um arranjo monogâmico e não monogâmico está nas dinâmicas praticadas por esses sujeitos e não no número de seus envolvidos” (p.73). Ou seja, Loureiro nos convida, por suas personagens, a conhecer as experiências complexas da não monogamia de uma maneira delicada e sincera possibilitando a construção de uma gramática mais profunda sobre.

O importante é que façamos um entendimento responsável da questão, sem julgamento moral e sem criar gramaticas opressoras e que vão categorizar pejorativamente pessoas. A pluralidade das formas de relações afetivos-sexuais não são novidades na sociedade. Nos últimos anos as discussões sobre a temática têm ganhado mais espaço e sendo mais teorizadas. No campo acadêmico, quando podemos nos debruçar sobre o que tem sido produzido a respeito, ainda não há um consenso de definições sobre como definir as multiplicidades de relações que existam, mas há sim uma gama de categorias que já foram criadas para definir todos os tipos de relações. Isso não significa que seja a solução da pendenga. Pelo contrário cria uma aba crítica de discussão de como a mandonismo acadêmico pode legislar sobre como devem ser as relações afetivo-sexuais entre sujeitos. O conflito teórico esbarra claramente na prática quando nos deparamos com as relações que possam existir, ou seja, uma coisa é categorizar as relações afetivo-sexuais em X ou Y de como X é e de como Y não pode ser. Outra é a prática relacional que existe de forma como aqueles sujeitos dialogam e acordam entre si para experimentar e concretizar suas existências.

“Vinco” de Loureiro nos dá um ponto de fuga interessante para essa querela. O autor nos propõe uma realidade paralela, de comunicação que é de afeto para afeto, para discutir a questão das múltiplas relações afetivo-sexuais. Apesar de partir de uma base teórica que toca gêneros e sexualidades, Loureiro traz uma gama de personagens e histórias que falam algo bem importante para entendermos essas relações: sobre a importância de saber sobre as experiências. O segredo de “Vinco” está aí: é um texto que proporciona a experiência das relações e não as regras como em muitas vezes ao ler um texto acadêmico que pode tentar nos ditar regras de como devem ser ou não as formas de relacionar e sairmos pessoas leitoras culpadas de não entender todas as categorias ou que ainda podemos estar violando com nossos preconceitos uma ou outra forma de amar.  “Vinco” nos proporciona as histórias de vida de quem realmente vive relações poli-afetivo-sexuais e aprendemos com elas. O importante de “Vinco” é que cada história de casal ali relatada é singular, irreprodutível, não dita uma regra e não cria uma gramática pejorativa e opressora a ninguém. Em “Vinco” ninguém das relações poliamorosas é resto de alguma coisa e que pode ser explorado ou jogado fora quando se cansa. Ao contrário, todos são protagonistas nas relações.

Brincadeiras à parte e campo minado na polêmica da “marmita de casal”, nós podemos refletir sobre nossos comportamentos para uma real proposta de relacionamentos que obedeçam às lógicas heteronormativas. Olhar para o outro apenas como corpo a ser consumido e transformar as relações afetivo-sexuais como uma economia, traz uma perspectiva neoliberal e contraditória às formas poli-afetivo-sexuais que propõe maneiras contra hegemônicas e não monoteístas de estabelecer relações. “Vinco” de Loureiro nos oferece uma via interessante de pensar como queremos amar e transar como experiências únicas, só nossas e uma gramática não violenta estabelecida na microfísica singular de uma união, acordo ou pacto.

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Referências

 GONÇALVES, I. V. Matemática dos afetos, dissensos e sentidos sociais acerca das noções de “monogamia” e “não-monogamia”. Revista Teoria e Cultura, v. 16 n. 3, 2021.

LOUREIRO, T. Vinco. 1º Ed, Maringá: Viseu, 2021

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor, pesquisador e doutor em teoria literária. danielmanzoni@gmail.com

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Imagem ilustrativa: obra de Andy Warhol

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