* Por Sérgio Tavares*

É emblemático um livro como Torto arado, cujo pano de fundo é o Brasil onde perdura o modelo escravocrata de exploração de mão de obra, ganhar o Prêmio Leya, promovido por uma editora de Portugal.

É um privilégio ser contemporâneo de Itamar Vieira Junior e presenciar o nascimento de um clássico instantâneo, um romance com um propósito estreito de penetrar fundo no Brasil rural, adumbrando a miséria, a fome, a seca, até se deparar com um espelho d’água, que é o espanto e a amplitude do tempo, onde o passado reflete o passado para o passado, e o presente é a negação da evolução e do pensamento social, da liberdade dos homens.

É impossível se desprender dos fios viscosos dessa história pulsante, caudal, sobre as irmãs Bibiana e Belonísia, nascidas e criadas no território primitivo de uma fazenda no sertão baiano, uma extensão de terra castigada que recebe retirantes, concedendo-os moradia em troca de um trabalho braçal sem trégua, mesmo diante da crueldade das intempéries, mesmo diante da maceração do corpo.

É doloroso ao mesmo tempo que contagiante presenciar, na condição mágica de um andarilho não-narrado, o íntimo dos fatos, transitar pelo interior da casa e ao longo do recorte geográfico, de modo a sentir o cheiro da terra quebradiça e da morte encarniçada, ouvir os lamentos terrosos e as súplicas santas, estar junto às pessoas que vagam por uma linha tênue entre sofrimento e resistência, que vão ruindo até o encontro com a finitude, até não serem mais.

É fascinante ser seduzido pelo misticismo das rezas e das ervas, por entidades que atuam do primeiro choro ao último suspiro, incorporadas na velha Donana e depois em seu filho, Zeca Chapéu Grande, praticante do jarê, uma amálgama das crenças católica, indígena e africana, por meio da qual goza de uma liderança local e a emprega na proteção da esposa Salustiana e dos filhos Bibiana, Belonísia, Domingas e Zezé, ainda que a função de esteio, por outro lado, condena a todos a um sistema de servidão.

É habilidosa a maneira com que o autor, doutor em estudos étnicos e africanos, utiliza-se da sabedoria sobre a história social dos nossos antepassados e dos antepassados dos nossos antepassados para remontar-compor todo um universo de personagens, imagens e sentidos de um jeito perene e extremamente natural, consorciando conhecimento e imaginação na flexão dessas três vozes que conduzem os movimentos do livro, sendo duas delas das irmãs ligadas por conta de um acidente e depois desligadas por conta da rivalidade de um amor, que as farão tomar destinos diferentes, sofrerem mais ou menos iguais e divergirem no modo de entender suas condições de filhas do campo.

É luminoso ser testemunha do traçado errático dessas existências, faceadas num ardiloso paralelo pois de fato são duas linhas de assimilação do mesmo vivido, duas correntes guiadas pelo discurso da memória que varre os confins do Brasil arcaico, de um povo de canto áspero, rústico, onde termos coloquiais, vocábulos cultos e regionalismos se incorporam numa densa fala melodiosa, palavras que soam esquecidas mas de potência identitária, sem que caia na performática estilização, sem que seja remendo.

É instigante desvendar os significados e simbolismos velados, entremostrados, ressoando de alto a baixo nas harpas das páginas, do fim ao começo, quando uma personagem perde a capacidade de se comunicar, e seu mutismo representa as mulheres desse romance feminino, sufocadas por uma comunidade patriarcal, subjugadas e violentadas pelos maridos, desacreditadas do poder de luta devido ao gênero sexual, exploradas por serem miseráveis, por serem negras, sem direito a reclamar a terra que lhes pertencem, sem direito a defender os seus, a própria história, e, se insistirem, são atacadas, são abatidas, são caladas enquanto mudas.

É assustador, brutesco, acordar do livro de Itamar Vieira Junior, que faz com que se olhe para as atrocidades cometidas num antes distante e num antes próximo e se reflita, e se repare, e ouvir de um representante nomeado pelo Governo declarar que, sendo ele próprio negro, a escravidão foi benéfica, que os negros brasileiros reclamam porque são imbecis e desinformados pela esquerda, como se aqueles que escravizaram nossos ancestrais ou os que continuam a escravizar comandassem seus atos pelo exercício ideológico e não pelo comprometimento de rebaixar uma raça ao chão dos animais, de inferiorizá-la, de extingui-la.

A todos os lusófonos, do Brasil, da África e de Portugal, que leiam Torto arado!

 

  1. do resenhista: Escrevi este texto crítico no mesmo dia em que assisti Bacurau, longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e é aterrador como, embora o enredo do livro se vire para o passado do Brasil e o roteiro do filme mire um futuro, ambos convergem para o nosso presente. No que vocês tornaram o país?

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Torto arado, de Itamar Vieira Junior (editora Todavia, 264 páginas)

Avaliação: Ótimo

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

 

 

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