* Por Alex Andrade *

Álamo abre a janela para que o sol possa entrar pela casa, o pai ainda dorme no quarto dos fundos. Ele retira da mochila alguns livros que trouxe para ler, enquanto acompanha o velho no período em que a cuidadora teve que se ausentar.

Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski narra a história de um jovem estudante, pobre e desesperado que perambula pelas ruas de São Petersburgo até cometer um crime que tentará justificar por uma teoria. Álamo estava tentando terminar a leitura deste livro na república onde dividia um pequeno cômodo com mais três alunos da faculdade de sociologia.

Até que o telefone tocou insistentemente. Era Dora, a cuidadora. Seu Álamo, diante de tudo o que está acontecendo no mundo, e com as previsões de que teremos que nos isolar, preciso lhe informar que não há mais como cuidar de seu pai, finalizou a ligação.

Gustavo é seu pai, mas é difícil para ele pensar no velho como pai. Faz cinco anos que não se viam, os contatos eram sempre através da moça, Dora, que naquele instante se isolava do mundo, como todos ao redor. Com o passar dos dias, o jovem tentou ainda seguir alguma rotina que, cuidadosamente, antes de partir, Dora havia anotado em um papel e grudou com um imã na geladeira. Razapina após o desjejum, lexotan antes, aspirina para afinar o sangue duas vezes ao dia, dar bastante água,  ligar a tevê no canal de esportes, se bem que nesse período todos os jogos eram antigos e repetidos, pois não haviam mais jogos de futebol ao vivo. Na hora do banho esfregar bem debaixo do braço, ah, antes tirar a perereca da boca e colocar de molho em um copo d’água com solução de flúor para desinfetar, em seguida esfregá-la com a escova verde que está na caixinha dentro do armário debaixo da pia do banheiro, não esqueça de colocar a fralda, ele reclama um pouco, pois se sente invadido, não dê bolas a ele, faz muita birra, de uns tempos para cá tem se comportado feito criança, faz malcriação e até bate em mim.

Álamo prepara um café no coador de pano que está pendurado no console embaixo do armário acima da pia da cozinha. O coador está tão surrado que parece não ter sido lavado há meses. Ferve a água e põe o pó para coar. De manhã costuma não funcionar direito, por conta dos estudos que varam a madrugada, muitos livros para ler, muitas pesquisas. Desde que chegou, tenta se organizar para manter a ordem.

A água passa pelo filtro de pano fazendo aquele barulhinho que sempre lhe recordava a infância, quando a mãe, dona Rosa, coava o café cantarolando pela cozinha, e ele ficava sentado admirando a cena.

Na Universidade, geralmente tomava café em uma cafeteria próxima, um gole e corria para a aula, pois sempre acordava atrasado.

Enquanto a água ia descendo pelo coador, passou a procurar o pote de açúcar, onde será que ficam as coisas nessa casa, pensava, enquanto vasculhava os armários.

De repente um barulho chamou a sua atenção, o velho tinha soltado uns grunhidos do quarto. Enquanto as gotículas de água passavam lentamente do coador para a xícara, Álamo correu para ver o que acontecera.

No quarto dos fundos, a porta aberta, a luz do abajur acesa, seguindo as recomendações de Dora, e nenhum sinal do velho na cama.

O jovem agachou-se para procurá-lo por debaixo do estrado de madeira que sustentava o colchão, poderia ter caído e rolado para lá, mas não.

Álamo correu ao banheiro para ver se por acaso teria ido mijar. A luz do banheiro que ficava no corredor à direta da porta do quarto mantinha-se apagada, a tampa do vaso sanitário fechada, a toalha milimetricamente colocada em seu lugar, como Dora dizia que o velho gostava, afinal, era um homem extremamente organizado, e com a aceleração da doença, os toques acompanhavam o mesmo caminho. Desde que a mulher viera a falecer, com o filho que morava em outra cidade, seu Gustavo começou lentamente a desabar, com a idade avançada, o silêncio da casa, volta e meia conversava sozinho, pouco saía de casa, suspeitavam que a depressão já estaria dando lugar à demência.

Pai, chamou pelo corredor, pai, onde o senhor está, continuou, ainda absorto.

Se o velho saiu à rua, seria impossível, não há ninguém na rua, as pessoas estão todas recolhidas, há uma pandemia que assola o mundo, como alguém o teria visto vagando pelas ruas.

Álamo corre ao celular, Dora, Dora, meu pai sumiu, estava há pouco deitado, fui preparar meu café e de repente ouvi um barulho, um gemido,  já vasculhei a casa, o quintal, já gritei por ele, você sabe se ele costuma visitar alguém por essas bandas.

A mulher do outro lado da linha ficou alguns átimos de segundos para responder, até que, com a voz embargada, reage:

– Seu Álamo do céu! Pela virgem Maria mãe de Deus, ele nunca saiu de casa, nunca foi a lugar algum sozinho, desde que estou o acompanhando, eu que o levava às vezes para dar uma volta!

O jovem não tinha tempo para conversas, precisava procurar pelo pai perdido. Abriu a porta de casa, chamou pelo pai do portão do quintal, os vizinhos apareciam pela vidraça da janela, sem nada entender, mas ninguém ousava abrir a porta ou sair à rua, era um caso de vida ou morte, estavam todos reclusos. Nem o entregador se aproximava. Álamo o interrogou se tinha visto um homem velho, cabelos encaracolados, barbudo, de óculos, ou sei lá, sem óculos, forte, estatura mediana, andando com certa dificuldade,  de vez em quando conversava e falava coisas desconexas, o senhor viu?

De longe, já com a motocicleta fazendo um barulhão do acelerador, o homem apenas fez um gesto negativo com a cabeça, virou-se e partiu.

O velho sumiu. Por enquanto é um velho que não aparece, que já há algum tempo não voltava e que levemente sumia.

Álamo é o filho. Depois de cinco anos sem contato com o pai, se vê na obrigação de cuidar da sua proteção,  no meio do caos que o mundo se apresenta. O mundo que de repente,  virou de cabeça para baixo. Todas as ideias do velho já tinham se partido no ar. E os planos do jovem ficaram suspensos, sem saber direito o que viria a acontecer dali para frente. Acontece que não há como encontrá-lo, não há pessoas na rua para  perguntar onde o pai, por acaso, tivera passado.

O velho, já tinha encerrado seu ciclo há algum tempo, estava nos minutos da prorrogação, se ele voltar, a história acaba. Mas enquanto não volta Álamo continua com sua aflição.

Meu pai, dizia ao telefone, doutor, ele estava dormindo, eu vi, eu juro. Se o senhor quiser, posso passar agora na delegacia para levar uma foto dele. Oi? Tenho que fazer um B.O. via internet, como assim?

Álamo pensou em pôr uma máscara e sair pelas ruas atrás do velho. Ainda insistiu com a polícia, ligou para os amigos, para uns poucos parentes que restavam, depois lembrou-se do café.

Procurou os óculos em cima da penteadeira, o café já tinha esfriado, raios, bradou enfurecido, ligou a tevê, tentou mudar o canal para assistir o noticiário, pode ser que alguém tenha encontrado um velho moribundo perdido pelas ruas, sem máscara,  totalmente desprotegido, mas o único canal que funcionava era o de esportes. Raios, bradou novamente, e ainda estavam transmitindo um jogo antigo, de sei lá quantos anos atrás. Então ligou o rádio. Passavam uma entrevista com um general que seria o novo ministro da saúde. Mas ele nem é médico, resmungou. O que está acontecendo neste mundo, meu Deus? Interrogava a si mesmo, o tal general estava concluindo um discurso decorado onde indicava um remédio para uso em pessoas contaminadas pelo vírus, mas que a Organização Mundial de Saúde não tinha concluído sequer a eficácia deste medicamento para este fim.

Álamo desligou o rádio e como se quisesse respirar de toda a loucura que pairava a sua volta, abriu a janela dos quartos, da cozinha, os basculantes do banheiro e percebeu que estava começando a chover. Depois escancarou a porta da sala e a porta dos fundos da casa, caso o pai quisesse voltar.

Veio um vento forte, seco, frio.

Depois, pegou o livro do Dostoiévski que estava jogado em um canto, o abraçou e disse: tchau, meu velho, vá em paz.

*

Na manhã do dia seguinte, o coveiro do cemitério do Maruí, relatou ao pessoal da administração do local, que encontrou um homem de estatura mediana, grisalho, cabelos encaracolados, caído, já desfalecido, ao lado do túmulo da Sra. Rosa Damasceno, com uma flor esmigalhada entre os dedos. Em seu relato, o homem disse que por muitas vezes, este mesmo velho foi visto sentado ao lado deste mesmo túmulo chorando, e que sempre estava ao acompanhado de uma senhora que o amparava pelos caminhos.

*

Alex Andrade é escritor e arte-educador. Tem publicados os livros de contos A suspeita da imperfeição, Poema, Amores, truques e outras versões, As horas. Os romances Longe dos olhos e Antes que Deus me esqueça e os infantis O pequeno Hamlet, A galinha malcriada, A história do menino, A menina e a sapatilha e o menino e a chuteira e o recente O gigante. Participou de diversas coletâneas de contos.

 

Tags: