Por Renato Tardivo*

 

Literatura e psicanálise

As relações entre literatura e psicanálise são marcadas por ambiguidades. Os escritos de Freud foram diversas vezes considerados literatura, sendo que o único prêmio recebido por ele em vida foi o Goethe. O pai da psicanálise, no entanto, não se sentia muito à vontade com essa aproximação e jamais desistiu do sonho de que sua teoria fosse aceita pela ciência.

Há exceções, contudo. Nos Estudos sobre a histeria (1893-95), Freud afirmou que seus casos clínicos guardavam mais semelhanças com as novelas do que com os relatos científicos. E, de modo ainda mais contundente, em uma carta de 1922 endereçada ao escritor Arthur Schnitzler e que não veio à luz enquanto o psicanalista era vivo, Freud confessou: “Penso que o evitei a partir de uma espécie de temor de encontrar meu duplo”.

Assim, a partir da postura ambígua assumida por Freud, os estudiosos da relação entre a literatura e a psicanálise parecem se dividir em duas vertentes – a que vislumbra na psicanálise uma poderosa ferramenta de leitura e análise do texto (perspectiva iluminista adotada inclusive por segmentos da crítica literária) e a vertente que propõe uma analogia entre as duas áreas ao valorizar o diálogo que elas estabelecem em seu potencial poético e libertador. Esta última, do meu ponto de vista, é a vertente mais interessante.

Palavra e imagem

O romance As fantasias eletivas (2014), de Carlos Henrique Schroeder, nos oferece alguns elementos para encaminhar esse diálogo. Na primeira parte do livro, “S de sangue”, são narrados flashes da história de Renê, recepcionista noturno de um hotel em Balneário Camboriú, que alternam eventos do passado e do presente, sem maior preocupação em conectá-los. O cotidiano de recepcionista de hotel de uma cidade que recebe turistas do Brasil e de países da América do Sul é emblema da sua condição atual: ele fala com muita gente, segue uma série de regras internas (que envolve taxistas, seguranças, garotas de programa), mas é extremamente solitário. Renegado pelos pais, seus encontros com mulheres não vão adiante e amigos tampouco ele tem. Seu passado, ao que tudo indica, é repleto de eventos traumáticos; sua vida (com a qual o leitor toma contato) já está estragada, esfaqueada, sinuosa como um “s”, de sangue.

Até que ele conhece Copi, uma travesti argentina que deixa seu cartão de visita na recepção do hotel. Em um primeiro momento, nenhuma novidade: o vínculo entre eles é truncado. Copi vai ao hotel para cobrar o fato de ele nunca tê-la acionado para um hóspede e o agride. Mas, depois, ela se desculpa, e aparece com “uma caixa de alfajores Havanna nas mãos”. Esse evento, marcado pela reparação, é decisivo, pois aproxima definitivamente as duas personagens. Renê parece aprender com Copi a cuidar do que ele valoriza. Contudo, também a amizade entre os dois é narrada em flashes. O leitor só vai tomar contato mais profundamente com o vínculo entre eles quando Copi já não está mais presente e Renê rememora uma conversa que tiveram.

Há, nessa medida, algo da temporalidade apès-coup, temporalidade freudiana segundo a qual as inscrições do vivido são significadas só-depois de vividas. Na segunda parte do romance, “A solidão das coisas”, Renê (e a narrativa) apropria-se das imagens e dos textos de Copi. Conquanto a menção no livro seja à Polaroid, as fotografias 4X4 lembram também as imagens do Instagram, o que confere ainda mais atualidade a essa história, tão contemporânea.

Assim, a fotografia, que Barthes define como “imagem viva de uma coisa morta”, é uma das linguagens de que se vale o livro. As imagens são emblemas do olhar de Copi e, dessa perspectiva, ela é também imagem viva de uma coisa morta. Segundo Barthes, a fotografia provoca um sentimento doloroso e enigmático justamente porque revela o que já não é; um “isso foi”. E é o mergulho de Renê nas fotografias, descrições e poemas de Copi – estes últimos reunidos na terceira parte do romance, “Poesia completa de Copi” – o que vai permitir que ele ressignifique a sua história, diferenciando-se da amiga, seu duplo.

A quarta e última parte, “As fantasias eletivas”, inicia-se com um texto de Copi endereçado à mãe e intercala breves passagens sobre ela e Renê. Após a imersão nas fotografias e poemas da amiga, Renê retorna à história. Suas fantasias confundem-se com o legado de Copi para, só depois, se diferenciarem. Mas isso é fruto da escolha de Renê, que enfim descobre que sepultar o passado é tarefa impossível e que a capacidade para estar só é condição para renascer.

Realidade e ficção

        Retomando a vertente que leva em conta a analogia entre literatura e psicanálise ao não reduzir uma à outra e valorizar o diálogo entre elas em seu potencial poético, o que podemos dizer sobre a leitura de As fantasias eletivas? Do meu ponto de vista, podemos encaminhar os pares de duplo do romance – palavra e imagem, Renê e Copi – à luz da correspondência, para a psicanálise, entre realidade e ficção.

Para Freud, realidade material e realidade psíquica, conquanto se comuniquem, não coincidem. A psicanálise não considera que exista uma verdade (correspondente à realidade material) que deva ser acessada; em vez disso, a ênfase recai sobre as constantes ressignificações, atravessadas pelas fantasias dos sujeitos, entre o vivido e o imaginado.

Dessa perspectiva, a realidade é sempre uma representação. Decorre daí a noção de temporalidade après-coup, registro no qual o romance de Schroeder é narrado. Ainda, podemos pensar nessa mesma direção as proposições de Barthes sobre a fotografia – “imagem viva de uma coisa morta” –, nas quais o vivido é ressignificado só-depois.

É este o modelo de aparelho psíquico apresentado por Freud em Notas sobre o bloco mágico (1925). Nesse ensaio, Freud propõe a analogia entre o aparelho psíquico e o brinquedo chamado bloco mágico (posteriormente conhecido como lousa mágica). No brinquedo, os traços ficavam permanentemente marcados na cera embora pudéssemos levantar a dupla folha que a cobre e supostamente “apagar” o que fora escrito, de modo que novas marcas viessem a ser incorporadas. Ora, não seria análoga a dinâmica da trajetória de Renê? Não seriam as fotografias de Copi, das quais ele (e a narrativa) se apropria emblema do bloco mágico?

A própria forma fragmentada do romance, reunindo diversas linguagens, narradores etc. traz a questão das contínuas representações, isto é, como significamos o mundo, o outro, a nós mesmos… Nesse sentido, a realidade terá sempre algo de ficção, uma vez que, com o atravessamento da fantasia, jamais será unívoca em sua manifestação. E é esta a marca que a ficção de Carlos Henrique Schroeder vem deixando na literatura brasileira contemporânea – a da reciprocidade entre signos, passado e futuro, realidade e ficção. Uma linha tênue, quase invisível.

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Renato Tardivo é escritor, psicanalista e doutor em Psicologia Social (USP). Autor de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê) e dos livros de contos Do avesso (Com-arte/USP), Silente (7Letras), além de Girassol voltado para a terra (Ateliê), a ser lançado em 2015.

 

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