Por Manoel Herzog *

Antenas da humanidade, os poetas costumam captar a essência do seu tempo e, não raro, suas obras, ainda que plasmadas em lugares distintos e por autores distantes podem magicamente abordar um tema comum, coisa do sutil. Curiosamente duas das melhores obras em verso que conheci neste ano de 2015 revisitam o tema miltoniano/dantesco do paraíso, sonhado/perdido.

Ambos publicados pela Editora Patuá, os trabalhos de Waldo Motta (Terra sem Mal) e Ademir Assunção (Pig Brother e Até Nenhum Lugar) são dois épicos contemporâneos a tratar da terra, a nossa terra, no crucial momento em que a nação enfrenta a ascensão do que há de pior e as esperanças vêem-se embotadas enquanto o diabo está solto “no meio do redemunho.”

Com Terra Sem Mal, Waldo Motta, poeta do transcendental, retoma o tema recorrente em sua obra, a sacralidade, o sacro em última instância, também representado aqui pela região corporal de mesmo nome. A Terra livre de males do poeta capixaba é um oásis índio sem culpas cristãs, ideário platônico de perfeição onde a beleza de um paraíso não vitimado pelo mal (o capitalismo, em derradeira instância) sai vitoriosa de cinco séculos de opressão, de escravidão, de monocultura (no ES de Waldo representada especialmente pelo eucalipto).

A Terra Sem Mal, de Waldo Motta, é um longo poema esperançoso, um alento, como escritura sagrada onde um Gilgamesh andrógino vence a hipocrisia dominante e restaura a cidade de Deus. Dentro da práxis do poeta há intenso uso de hermetismos linguísticos que vão do hebraico ao alemão, com forte inserção no tupi-guarani. É um sopro a sua leitura, afeta de uma alegria inexplicável, misteriosa.

Nos dois livros de Ademir Assunção (que ouso, nesta singela análise, qualificar como uma única obra), a esperança dá vez à absoluta derrocada que impregna o livro primeiro, Pig Brother, escatológica epopeia trash, esta nouvelle Waste Land é plena de absoluto horror que o poeta, numa pegada beatnik, vai levando o leitor a se ver mergulhado. Fazendo largo uso de citações e referências que passeiam pelas obras de Eliot, Belchior, Ginsberg, Bashô e, por pano de fundo, Orwell, o mundo deste épico contemporâneo é vigiado por um macabro e absoluto senhor, o Irmão Porco, o capitalismo. Claro, o cenário da obra de Assunção é frenética cidade de São Paulo, onde a ideologia do absurdo neoliberal parece florescer com mais pujança.

Contudo, o frescor de uma possibilidade surge se agregarmos à leitura deste livro primeiro o belo Até Nenhum Lugar, um livro de delicadezas quase nipônicas, as delicadezas que a técnica do horror empregada em Pig Brother relegou/reservou ao apêndice, em notável chiaroscuro. Por isto considero a ambos como obra única, e assim parece ter soado à editoria, que os mandou imprimir em complemento, ótima alternativa.

Figurando brilhantemente, numa atuação de David contra Golias, entre as grandes editoras, a Patuá segue constelando autores entre os prêmios de relevância. Num cenário em que a sociedade brasileira (ou ao menos parte dela) parece clamar pelo fim do inferno que se vive, ao passo que vários demônios dançam inebriados no festival de atrocidades, estas duas obras, já referendadas por gente do porte de Ademir Demarchi e Amador Ribeiro Neto,  chamaram-me a atenção por absolutamente afinadas com a missão da Poesia, dizer o que deve ser dito.

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Terra sem Mal, de Waldo Motta (editora Patuá, 120 págs.)

Pig Brother e Até Nenhum Lugar, ambos de Ademir Assunção (editora Patuá, 136 págs., e 100 págs.)

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Manoel Herzog é escritor, autor de Companhia Brasileira de Alquimia, entre outros 

 

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