Por Altair Martins *

Horácio Quiroga e aquele clichê: para ser escritor, era preciso trabalhar no circo. Então, porque queríamos mesmo escrever, entregaríamos folhetos informativos do circo que se apresentava em Salto. Horácio ainda não tinha cara de escritor, era só uruguaio e já barbudo, embora escrevesse histórias de suicídio para as aulas de castelhano e inventasse essa morte para seu pai. Depois da panfletagem, circulávamos sob as lonas como se fôssemos gente do circo, e Horácio desaparecia constantemente, para reaparecer e me puxar a ver as cobras enormes que um homem desarmado enfrentava no picadeiro. Daquela vez ele insistiu que eu fosse ver a coisa mais incrível do mundo: um menino suicida.

Tinha a nossa idade, treze ou catorze anos. Estava dentro de um aquário imenso, de vidro espesso, arestas e tampo de madeira. Pelo cadeado fechado, disse a Horácio que não parecia suicídio, e ele me fez ver que o corpo havia mudado de posição. Vi que o menino se mexia, porque deitou, moveu um braço e ali ficou, dentro d’água, enquanto esperei que ele subisse para pegar ar. Vez em quando umas pequeninas bolhas escapavam do nariz e subiam à superfície. Como quem queria muito escrever, Horácio mexeu no cadeado, mas tão logo os olhos rasgados do menino se abriram, e os cabelos se moveram como alga, corremos dali, corações assustados pelo labirinto de feras.

Então, depois do muito que discutimos – se para Horácio o menino era uma espécie de peixe, para mim tudo era truque –, ganhávamos cortesias para duas noites, e era a vez de sentarmos juntos para ver o número: entrava no picadeiro um homem enorme, com roupas africanas, segurando por uma corrente o menino, que vestia apenas uma tanga prateada. Atrás estava o aquário, que enchiam com água quase até as bordas para uma finalidade que adivinhávamos. O menino foi anunciado com nome de Itacuã, “o que tinha nascido numa noite de tempestade de pedras”. Tinham-no encontrado no Paraguai, numa reserva próxima ao Itaipu, vivendo dentro do lago sob os cuidados de uma família que vendia couros de cobras e de jacarés. Apresentava-se demonstrando uma resistência sobre-humana sob a água, coisa que aprendera com os répteis nas primeiras infâncias. O espetáculo não tinha duração prevista, e por isso era importante que o público prestasse atenção ao relógio afixado acima do aquário, iluminado por luzes amarelas.

E assim foi: uma música exageradamente alegre começou a tocar, e o homem enorme ergueu Itacuã pelos braços e o colocou dentro do aquário, onde o menino sentou-se e, submerso, ficou observando o número dos contorcionistas. De dentro d’água, viu os ciclistas, os elefantes, os leões e os tigres, o homem que lutava com cobras, trapezistas e equilibristas, a intervenção derradeira dos palhaços e a venda de lembranças. Encerrada a noite, Itacuã saía do aquário depois de mais de uma hora e sacudia os cabelos, respirando com dificuldades diante de um público que se rendia a palmas e assobios.

Voltando para casa, Horácio não tinha dúvida: era um sucesso aquele Itacuã. Acha ainda que ele tenta o suicídio?, perguntei. Horário olhou pra mim, com um sorriso de quem só queria escrever: Ainda não.

No dia seguinte, voltamos ao circo um pouco mais cedo e circulamos pelas lonas. Foi quando vimos o menino sentado dentro d’água. Enquanto Horácio sumia, e eu procurava entender como Itacuã fazia aquilo, vi quando o menino abriu os olhos e pareceu pedir socorro, batendo com as mãos no vidro. De onde veio a chave não sei, mas Horácio já a tinha e já abria o cadeado do tampo do aquário para um susto: Itacuã, tão logo percebeu o cadeado solto, pulou o vidro e correu, buscando a saída do circo, e fomos atrás. Abria-se, após uma barraca amarela, uma longa lona branca até o mato que descia ao rio Uruguai. Entendi o que o menino buscava e fui cercá-lo pelo outro lado. Itacuã me viu e, quando tentou dar meia volta, Horácio saltou sobre ele e o segurou até que eu chegasse. Vimos o menino rendido, ofegante. Havia fechado os olhos e, sem força eficaz, tentava se levantar. Horácio o ajudou. Cambaleante, Itacuã pôs-se de pé e olhou o mato e olhou o rio, para ele talvez distantes demais. E surpreendentemente caminhou em direção à parte sem lona, onde um sol intenso de meio de tarde tornava tudo branco, deu dois passos e caiu: vi a boca aberta chupando ar, os cabelos cobertos de serragem, numa angústia não sei de que dor. Horácio tentou levantá-lo, mas o sol forte revelava no menino uma pele gosmenta e mole, com um cheiro de coisa podre. Horácio disse que tínhamos de fugir. Se quiséssemos um dia escrever, pensei.

Caminhamos pela cidade até o cair da noite, em silêncio, e só voltamos ao circo na hora do espetáculo. Sentamos na plateia baixa, e alguém respondeu a Horácio que não haveria o número de Itacuã: que o menino, tentando fugir do aquário, havia se afogado fora d’água, enquanto corria em direção ao rio Uruguai.

Ficamos em silêncio, eu pensando no rio. Até que Horácio olhou para mim e disse que um dia devíamos escrever sobre aquilo.

– O fantástico?

– É. Ou o suicídio.

Foi a primeira vez que Horácio Quiroga teve cara de escritor.

*

Altair Martins é escritor, recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura 2009 com o romance A parede no escuro

Tags: