“Sempre assim.

Sempre que o amor vaza a maré.

Vou parar bem longe.

Aonde não dá pé.

Difícil de nadar.”

Canção de Gil e Roberta em direção à areia. Enquanto os surfistas manjavam o quebra-mar, eu apenas mirava Marina. Seus primeiros passos já tão firmes e tão solitários. Quanto maiores os peixes, menores os cardumes.

Fim de tarde abarrotado de cadeiras. Areia colorida. Marina feliz em descobrir o sal, distraída com as ondinhas que tocavam as palmas de suas mãos. Alegrias que se achegam em pequenas ondas, areia seca. Lavo suas mãos com água doce. Um sorvete enquanto escorre o nariz. Ranheta, essa Marina. Rabisca a areia com o palito. Meu castelo, essa Marina. Menina que veio do mar, repito nossas origens em pensamento. Maré alta que insiste em invadir minha fortaleza com facilidade, minando toda a dureza que represa nossos afetos. Fim de semana com Marina é um findar de inquietação. Mar revolto em calmaria. Porto seguro, essa Marina.

Desde o seu nascimento, a busca pelo oxigênio. O líquido no pulmão. A taquipneia transitória confirmada na radiografia. Respiração difícil que se cura em dois ou três dias. Os alvéolos da menina levaram sete. Angústia que conto até hoje nos dedos, no calendário, no celular, no relógio biológico. Todos os dias, desde seu nascimento, a gente se encontra aos fins de semana, um crescer sem fim de expectativa. Inteligente, essa Marina. Ágil, essa Marina. Surpreendente, essa Marina. Domingo. Logo dá a hora do vazar da alegria. Casa sem Marina é um vazio só, um silêncio só. Marina mergulhada num baldinho d’água. Sua porção de oceano.

Fazia um bocado de tempo que havia nos lambuzado de protetor solar. Fim de tarde ardido. Deixei os óculos escuros na cadeira e, submerso na mochila, fui em busca de um novo frasco. Frutas, água, chaves, suquinhos, livro, pelúcia, toalha e nada de protetor. Reviro os objetos na canga. Nada. A birra no mercadinho. Minha distração em conter o choro. Fiquei tão entretido com a compra do peixinho vermelho e o balde de plástico, que minha memória ficou acomodada juntamente com o protetor solar, sobre o balcão. Teimosa, essa Marina. Não servia o verde nem azul, tinha que ser o vermelho. Justo o da parte de cima do mostruário. Difícil de pegar. Chamei o proprietário da pequena venda para ajudar. Distraídos com a mesma distração, alegria de Marina. Solar, essa Marina. Minha alegria vem acompanhada de esquecimento.

Senti meus pés afundarem em areia movediça. Súbita, a maré subiu, arrastando cangas, chinelos, cadeiras, guarda-sóis e tudo mais. Entre gritos e risadas assustadas, viro-me para o lado e não avisto a menina. Logo adiante, um baldinho flutuando na correnteza que esvai rápida. Corro de braçadas em direção ao mar. Banhistas prosseguem no furar de ondas.

M A R I NA!

Nada enxergo, em meio às espumas. A culpa que a água leva e a esperança que a vida traz. Minha voz ganha a ronquidão da maresia, as pernas amolecem com o peso da areia e meus olhos marejam com a vermelhidão salgada. Miro o peixinho que a onda não carregou. O peixinho vermelho ganha o meu oceano. Vazio, desmorono na areia. Peço perdão a todos os Santos. Suplico à Iemanjá que não leve meu pedido em vão. Tragam Marina. Devolvam a minha razão, a minha Marina. Mas, nada da menina do mar.

“Vou correr o risco de afundar de vez.

Sob o peso da insensatez.

Já sem poder boiar.”

Por mais que relutemos, nossos males nos reafirmam no mundo. A pequena passou muito mal da última vez em que estivemos na praia. Minha irmã ofereceu um camarão. Comeu meia dúzia em minutos. Voraz, essa Marina. Passamos a noite no pronto-socorro. Ela toda empipocada e febril. Desespero vem acompanhado de falta de saber. Eu em minha falta de saber de ser pai. Agora esta falta de saber de Marina.

Regresso ao quiosque em busca de ajuda. Meus passos circulam as mesas aperreado. Na cozinha, uma senhora de avental engordurado consola a garotinha afogada em soluços. Era Marina, a rejeitar o pastel de camarão. Essa Marina, nenhuma onda leva. Eu me agarrei à pequena e ao nosso desconforto. Filha, a gente se reconhece na angústia. Reconheci seu choro no meu choro. Nosso abraço em terra firme. Ali submergia um oceano entre nós.

*

Adilson Zambaldi é comunicador social e escritor, com pós-graduação em Formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz. Você encontra este e outros contos do autor no livro Fidelidade das Araras (Editora Reformatório, 2021).

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