* Por Valéria Lourenço *

My doll and I, ou, em português, Minha boneca e eu, é o título do último livro de poemas de Virna Teixeira. Lançado em 2020/2021, em edição bilíngue, com tradução da própria Virna e também de Shelly Bhoil, o (a) leitor (a) tem em mãos doze poemas que o fazem se sentir como uma criança, agora adulta, que monta e desmonta sua boneca. Iniciando nossa conversa pelo exterior do livro, temos alguns destaques: enquanto a capa (ou podemos chamar de pele) traz somente o nome do conjunto de poemas em letras rosas sobre o papel branco, a contracapa é que guarda a surpresa, desenhos de mulheres ou de bonecas. Em seguida, detendo-nos no título, podemos perceber que a autora faz uso do pronome possessivo “minha” acompanhando o substantivo boneca. Este artifício traz uma maior proximidade entre o objeto e a narradora dos poemas. Em seguida, o uso de boneca, palavra que está flexionada no gênero feminino, nos indica que o eu-lírico dos poemas se concentra muito mais na figura da boneca como possibilidade de existência mais feminina do que masculina.

 Virna Teixeira, não por acaso, também é parte desse reinventar-se constante. Médica de formação, nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1971, atua na área de psiquiatria em Londres, está à frente do selo editorial Carnaval Press e edita a revista eletrônica Theodora. Além disso, também trabalha com tradução e publicou, entre outros textos, os livros de poemas Visita (2000), Distância (2005), Trânsito (2009), A terra do nunca é muito longe (2014) e Suíte 136 (2018). A poeta, tradutora e editora participa ativamente de leituras de poemas em diversos países. E, poderíamos chamá-la de agitadora cultural, pois Virna Teixeira está constantemente apresentando novos (as) poetas para o grande público, traduzindo poemas do português para o inglês e vice-versa, e conectando poetas de diferentes partes do mundo seja através de leituras coletivas, seja através de seu trabalho como tradutora. Atualmente, Virna também tem se dedicado também às artes plásticas e à costura.

A leitura dos poemas de My doll and I nos permite compreender como a poeta brinca com as palavras, para usar o verbo relacionado à infância, mas também com a forma como organiza seus textos, mesclando a língua inglesa e a língua portuguesa. Apesar de tecermos relações entre bonecos e infância, o texto de Virna Teixeira leva o(a) leitor (a) a adentrar o universo de pessoas adultas que se montam e se desmontam, para usarmos uma metáfora da cultura drag queen. São homens e mulheres que constroem outras possibilidades para seus corpos, rompendo com os padrões que lhes foram colocados pela sociedade.

A escolha de um trecho do “Manifesto ciborgue”, de Donna Haraway, para dar as boas-vindas aos (às) leitores (as) é uma pista do que teremos ao longo do livro, corpos que não se “encaixam” e ousam performar seus gêneros de modos diversos. O poema que abre o livro, “envolta numa malha”, sintetiza alguns temas que aparecerão durante a leitura:

envolta numa malha

compressora

no seu casulo

modelando

 

um corpo novo  por trás da tela

 

sonha com um bíquini

de Barbarella

verde-metálico

num baile muito além

da Praia do Futuro

 

rabisca na parede

 

os moldes     as botas     a peruca

para exibir a pele na maison de vidro

ou num porão noturno

 

com seus brincos de acrílico

seu feminino ciborgue

neuroatípico

 

entre punks e

incógnitos gêneros

 

libertos de coletivos e paróquias (TEIXEIRA, 2020, p. 6-8)

A fantasia de outros corpos, roupas e lugares, mas também o escapar de definições e limites impostos pela sociedade aparecem nos versos acima e nos outros poemas de My doll and I. Tratam-se de corpos que, para além dos tecidos que os apertam e comprimem, libertam-se de classificações e remodelam-se. É o que a metáfora do casulo nos deixa compreender. Em algum momento, haverá o surgimento de “um corpo novo” seja na forma real ou através dos sonhos. Afinal, como a poeta afirma: “a realidade está desfocada/ o que é verdade ou ficção” (TEIXEIRA, 2020, p.42).

O desejo-sonho de ser outra pessoa, quem sabe uma boneca, vai se realizando através da transformação do corpo:

nossas imagens

feitas de espelhos

 

avançando adentro

o reino da fantasia

 

[…]

 

enquanto cruza o salão

de castelos quiméricos

 

o feminino fetichizado

em corpos fragmentados

de terras imaginárias

 

atados em costumes de sonhos (TEIXEIRA, 2020, p.26-28).

As fitas de bondage, as roupas de renda, os brincos de acrílico que aparecem nos poemas contribuem para criar uma imaginação sobre o corpo que se quer ter. São corpos que, agora outros, escapam das classificações de gênero e se libertam de aprisionamentos coletivos, espaços que contribuem com a construção de determinadas identidades, mas que também podem criar outras essencializações sobre gêneros.

E, ao se re-vestir de peles outras, por prazer, os sujeitos que aparecem nos poemas querem justamente serem incógnitas diante do olhar de quem classifica:

 

estamos incógnitas

e extremas

minha doll e eu

 

unidas    fundidas

 

dressed for pleasure

 

no momento fugitivo

entre sombras

e luzes do norte (TEIXEIRA, 2020, p.16).

O universo infantil, por vezes, nos remete a um uso mais livre da linguagem, do corpo, e, por isso mesmo, da imaginação. Ao fantasiar ser outra pessoa e conversar através de palavras que são (re)inventadas, as crianças rompem com a barreira imposta pela vida real e constroem seus mundos. As bonecas e os bonecos, brinquedos muito usados nesta fase da vida, são, por vezes, para meninos e meninas, o primeiro corpo a ser re-mexido e re-formado ao longo da nossa infância. Mesmo antes de aprendermos a falar, o ato/brincadeira de vestir e despir um outro ser toma grande parte de nosso tempo. Talvez a sensação de remodelar-se já esteja ali presente. Essa conversa entre um corpo de adulto e um sonho de criança aparece em um dos poemas do livro “o corte da tesoura”:

[…]

camuflada atrás

da servil senhorita

que senta-se comportada

 

como o menino que carrega

por dentro tão educado

nas salas de espera do tempo

[…] (TEIXEIRA, 2020, p.12).

Ao longo da vida adulta, determinados grupos ousam brincar mais uma vez com seus corpos, suas roupas, seus nomes. Estamos nos referindo, principalmente aos (às) LGBTQIA+s. Nos versos acima, enquanto há uma senhora comportada, camuflada, por dentro do corpo remodelado, temos não um homem, mas um menino, ainda parado nos tempos da infância, “nas salas de espera do tempo”, e que agora pode ousar ter seu corpo modificado.

My doll and I, assim como as personagens que desfilam em suas páginas, é também um livro que não se deixa classificar. Poderíamos dizer que são poemas sobre sonhos, corpos, terras imaginárias e fantasia. No entanto, algo nos escapa. Afinal, o que Virna Teixeira nos apresenta é também uma tentativa de definição para o fazer poético. De forma generosa, a poeta brinca conosco ao escrever com o corpo a pretensão cotidiana de reinventar a realidade e dar de presente aos (às) seus (suas) leitores (as) palavras cobertas de novas peles, remodeladas, reconstruídas, para que nós também, inauguremos olhares outros.

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My doll and I, de Virna Teixeira, tradução de Virna Teixeira (Lumme Editor, 2020)

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Valéria Lourenço graduou-se em Letras na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, com mestrado em Cartografia Social e Política da Amazônia, pela Universidade Estadual do Maranhão. Valéria é doutoranda em Literatura comparada pela UFC, e professora de Língua Portuguesa e Literaturas do UFCE campus Crateús. Escritora, publicou *Penalva* e *Aya’ba*, e tem colaborado em algumas edições do Cadernos Negros (36, 37 e 42).

 

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