* Por Ronaldo Cagiano *

No balanço das minhas leituras de 2021, Degeneração, de Fernando Bonassi, é uma daquelas obras necessárias e imprescindíveis, sobretudo nesse momento em que um desastre político, uma crise sanitária e um declínio civilizacional pandemizam um país cuja Democracia, reconquistada  a duras penas há pouco mais de três décadas, vive seu pior momento, vilipendiada por um governo e sua coorte de imbecis armados até aos dentes pela ignorância, a burrice, o despreparo e a maldade como projeto político.

Em sua trajetória de escritor e roteirista, Bonassi vem mapeando a periferia geográfica, econômica e psicológica do povo brasileiro em livros, peças e produções cinematográficas e televisivas pungentes (“Subúrbio”, “Luxúria”, “Estação Carandiru”, “Arena contra Danton”, “Força Tarefa”, “O Caçador”, “Apocalipse 1,11” etc) que abordam nossos mais trágicos passivos e outras tragédias individuais e coletivas. Nesse novo trabalho aprofunda e atualiza o seu olhar crítico e reflexivo sobre um país convulsionado, cujo presente insiste em encharcar-se de um passado que esperávamos enterrado, mas que renasceu, após o impeachment de Dilma Roussef e ascensão de um conservadorismo pro-facista que culminou com a eleição da truculenta chapa Bolsonaro-Mourão.

Degeneração mergulha nos esconsos de uma família, no momento em que o filho tenta liberar para a cremação o corpo do pai (um ex-agente da polícia, cuja morte coincide com o fim semana  das eleições presidenciais de 2018. Em seu périplo pelos escaninhos da burocracia, o narrador-personagem percorre os labirintos de sua relação conturbada com um pai conservador e autoritário e realiza uma profunda e analítica autópsia de um País pervertido e degenerado pelos rumos dos acontecimentos.

Na arquitetura formal, Bonassi alterna, habilidosamente,  os recursos da narrativa:  ora utilizando-se de um viés epistolar-confessional, quando o filho intercala um longo e catártico monólogo com o pai, rememorando cenas de uma convivência tumultuada,  numa espécie de acerto de contas emocional ao perfilar sua trajetória familiar e funcional; ora, valendo-se de descrições, diálogos, registro visual e subjetivo das situações, em que o discurso indireto livre deambula por amplos cenários.

O faro jornalístico e a habilidade narrativa do escritor fundem-se num denso e tenso romance em que a crueza e a frontalidade revelam uma imersão cirúrgica sobre a sociedade brasileira das últimas décadas, em cujas vísceras esmiuça os elementos que constituem a engrenagem de um corpo adoecido por mazelas históricas. Além do mérito de uma linguagem-acicate,  que não doura a pílula, exuma antigos cadáveres  e expõe o nosso apequenamento como Estado e  nossa indigência como Nação,  Bonassi denuncia e alerta para o “o beco sem saída em que nos metemos coletivamente”, como assinala Luiz Ruffato na orelha.

Um livro dessa voltagem e com a carga simbólica que traz em todo o seu arcabouço como exposição de uma realidade aviltante e nossos mais agudos contrastes não deveria passar em silêncio, precisamente nesse tempo em que o vírus negacionista do passado e as mentiras que tentam desconstruir o horror da ditadura impõem-se pela sua virulência e desfaçatez sem uma oposição, seja ela política ou intelectual, capaz de esterilizar os tantos golpes que vêm sendo impostos, de forma soez, às instituições e ao Estado de Direito.

Degeneração é metáfora de uma miséria política e moral, cujas consequências lesivas ainda não foram dimensionadas, mas apontadas com rigorosa investigação literária e responsabilidade estética de um escritor antenado com as demandas de seu tempo e as questões mais agudas que nos afligem.  Nessa obra instigante e avassaladora, Bonassi abre picadas para o leitor, em meio ao cipoal de nossas contradições, para que possamos entender esse momento crucial e sem perspectivas que estamos vivendo e lança seu farol sobre as trevas que devemos combater.

Sem dúvida, Degeneração é dessas experiências literárias que nos provocam aquela sensação vulcânica já descrita por Kafka: ”Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um punho que martela nosso crânio, para que lê-lo?” Necessários, diz ele, são ”os livros que se abatem sobre nós como a desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos”.

Trecho:

  “Acordo de novo sem saber de que lado da realidade eu me encontro. Um fio de luz atinge a cara e desaparece. Atinge a cara e desaparece. É a porta de entrada que abre e fecha e os faróis acesos das ambulâncias estacionadas que não se apagam, apesar do sol que já subiu alto.

                               Por que uma dessas tralhas não te leva para o forno crematório? –  eu me pergunto em plena falta de logística daquilo tudo, e não aceito que os mortos não possam andar nos mesmos veículos hospitalares dos vivos, agora, contaminá-los, se for o caso, para depois serem limpos e higienizados: criar empregos, afinal!.

O fato é que eu me vejo na mesma condição em que cheguei ainda ontem: órfão, mais cansado e esfomeado, apenas. Irritado, também.”

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Ronaldo Cagiano é escritor de Cataguases (MG), vive em Portugal.

 

 

 

 

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