* Por Daniel Manzoni-de-Almeida*

Pensar em livro como um objeto de impacto no mundo é importante. Proponho pensarmos para além do obvio e necessário impacto intelectual, mas como a somatória entre essa vertente e a dimensão física que um livro pode ocupar no mundo. A leitura de um livro não consiste apenas da apreensão e uso das suas palavras no papel, mas da política que ele pode construir como objeto pelo mundo: um livro feito passa a ocupar um espaço físico, um corpo no mundo que exerce uma função. Então, como o objeto livro pode devastar uma realidade?

Tudo isso parece muito abstrato, mas não é. É parte de uma arquitetura que quase, em se falando da ausência de políticas de livros no Brasil, imperceptível. Recorro ao pensador e artista plástico mexicano Jorge Méndez Blake (1974) com sua proposta de conectar arquitetura e literatura que pode me ajudar a esclarecer essa questão. Blake trabalha com a proposta de como a presença de um livro, das palavras físicas colocadas no papel podem ir construindo estruturas arquitetônicas e modelando espaços. O artista plástico vai além com sua proposta e passa a enxerga o ato de fazer arte como uma forma de construir e desconstruir fisicamente um sistema linguístico. Para ele, quando as ideias passam a estar concretas em palavras, frases e livros há uma extensão importante dos limites da realidade física que conhecemos e que assim passa a se desenhar uma nova arquitetura no real. Uma de suas obras que teve maior repercussão nos últimos anos foi a construção de um muro irregular pela presença de um livro[2].

Todo esse preambulo no sentido da fisicalidade de um sistema linguístico não é grátis, mas tem a intenção de inserir um monumental lançamento literário no ano de 2021 no espaço brasileiro: “Os bugres”, do escritor Rodrigo de Roure (foto), pela Editora Urutau[3]. “Os bugres” de Roure assume a dimensão da imensidão física de um livro, contendo mais de 700 páginas, assim como a dimensão literária em que Roure se propõe a investigar e criar um espaço geográfico do subúrbio carioca em um desfile de personagens intrigantes, geniais e vivas. Para construir “Os bugres”, de Roure lança mão de suas experiências afetivas, sensações e memórias de uma vida no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro para dar vida, e como traz Blake, criar uma extensão da realidade das pessoas de uma parte silenciada do subúrbio carioca. As mais de 700 páginas de “Os bugres” entregam ao público uma cidade construída com destreza por um arquiteto das palavras. Sobre essa geografia literária, em 2021, coordenei a mesa “Narradores queers e suas cidades imaginárias” no Mix Literário em que de Roure discutiu como seu processo imaginativo e de memória foi importante para construir “Os bugres” e o subúrbio carioca proposto[4]. Ou seja, o que vemos em “Os bugres” é uma proposta arquitetônica de uma cidade: de Roure constrói, via imaginário literário, uma extensão do Rio de Janeiro.

Diante da imensidão física, “Os bugres”, ocupa o lugar de um projeto literário de leitura. Não é fácil encarar o livro de Roure para um público acostumado a carregar o livro em uma bolsa, ler no metrô de São Paulo ou no ônibus nas ruas do Rio de Janeiro. A enormidade física de “Os bugres” exige do leitor ou da leitura o compromisso com um projeto de leitura em que corpo, espaço físico e concentração devem ser resgatados como valores importantes no ato de ler. A experiência do livro de Roure vai exigir do leitor e da leitora, assim como exige de quem passeia por uma cidade nova, o compromisso intenso. Porém, assim como a admiração por uma arquitetura em uma cidade sendo explorada, a leitura de “Os bugres” é tão prazerosa quanto o deslumbre ao virar a esquina e se deparar com uma forma arquitetônica impactante. Principalmente pelo universo das mulheres, das personagens femininas, expostas por de Roure. As mulheres de “Os bugres” são muitas e revelam uma dinâmica social e cultural do feminino brasileiro especial da coletividade e cumplicidade entre essas mulheres e constroem um universo particular de resistência cultural, política e religiosa no subúrbio de Roure. Deixo a pergunta no ar, sobre essa questão em particular, para os leitores e as leitoras do livro: a construção das personagens femininas por de Roure em seu livro é a possibilidade da extensão da extensão de uma utopia da criação de uma arquitetura feminina de uma cidade de resistência pelas mulheres diante da opressão?

Ao juntar a literatura de “Os bugres” e a arquitetura construída por Roure não se pode esquecer da ligação entre o pensamento de Roure e do escritor João do Rio (1881-1921). Assim como João do Rio flanava pelas ruas dos Rio de Janeiro no inicio do século observando, coletando e traduzindo em palavras os espaços cariocas – construindo, assim, uma extensão da realidade silenciada – de Roure passeou por suas memórias e nos entregou em seu livro: o seu Rio de Janeiro.

“Os bugres” não é apenas mais um livro de literatura, mas a continuação do trabalho de uma ideia do livro como um objeto entre o pensamento e a forma física na transformação de uma realidade, como na obra de Blake, mas no desenvolvimento de uma ideia real de espaços de resistências múltiplas tão necessárias no mundo contemporâneo. Ler “Os bugres” é entrar em uma nova cidade, em uma nova realidade, em que a vida tem cheiros, gostos e memórias. Ainda, de Roure nos convida a fazer parte fisicamente de um espaço de resistência criado por ele. Uma trincheira a partir da memória.

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[2] Para saber mais sobre o artista Jorge Méndez Blake e sua obra: http://www.mendezblake.com/textos

[3] Para adquirir o livro “Os bugres”: https://editoraurutau.com/titulo/os-bugres

[4] Para assistir a mesa “Narradores queers e suas cidades imaginárias” no Mix Literário 2021 com a participação de Rodrigo de Roure: https://www.youtube.com/watch?v=o-mDUTvxfFg

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Daniel Manzoni-de-Almeida é professor, pesquisador, escritor. Doutor em Teoria Literária.

 

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