* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Recentemente, a artista Madonna lançou um argumento interessante para explicar a onda de críticas que envolvia a concepção, a produção e a direção da sua própria cinebiografia. Segundo Madonna, a sua tomada radical de fazer uma obra sobre sua própria vida, e de não deixar ao prazer de outra pessoa em realizar, é para que sua biografia não caia nas mãos de diretores homens misóginos que já a sondavam para fazer a obra. De um lado as críticas brotaram apontando que a artista é narcisista e quer ocultar partes não interessantes ou indigestas da sua vida. Ainda, defende esse lado da crítica, de que Madonna como pessoa pública já não deveria ter o controle sobre sua vida e como ela deveria ser contada. Entretanto, há os defensores de que Madonna está certa em contar sua própria história e impedir que fatos importantes e sensíveis da sua jornada sejam deturpados, que sua existência seja tomada de assalto e que pessoas do seu círculo de afeto sejam expostas de maneira irresponsável e de forma sensacionalista. O acontecimento é bem interessante aos nossos tempos fascistas, sobretudo, por ser trazido à tona por uma personalidade do mundo pop como Madonna. O que está como pano de fundo dessa pendenga é algo muito profundo para qualquer pessoa, mesmo distante dos holofotes da fama pop: é a construção da nossa identidade. Não aquela que nós intimamente temos certeza de quem somos, mas aquela identidade contada pelos outros. Tomando Sartre aqui de forma irônica, “o inferno são os outros” (Sartre, 1977) e, complementando, o inferno, em verdade, são o que os outros vão falar de nós. A brincadeira que faço com a famosa frase do pensador francês não foge ao contexto da nossa discussão, mas que muito do que padecemos é fruto das nossas relações de alteridade com os outros (Lima, 2011). Então, o que dizem de nós é constitutivo da nossa identidade, pelo menos o que vai circular publicamente. O único caminho, saudável e honesto, é a disputa política pelo poder de dizer e como dizer.

Identidade é uma palavra bem utilizada em todos os cruzamentos sociais. Há até um desgaste e um esvaziamento, obviamente, do seu uso e do seu conceito. Em todos os momentos ouvimos alguém – da esquerda à direita – clamar e reivindicar sua identidade. Em verdade, a identidade é a impressão singular que cada um de nós pode deixar no mundo. Daquilo que assumimos no nosso íntimo e trocamos com o mundo. Em geral, temos pouquíssimos controle sobre essa troca. Porém, vou por outro caminho com essa discussão que o argumento de Madonna me despertou. Não duvido e não acho que o conceito de identidade deve ser descartado na totalidade por aqui. O que vou colocar em pauta é justamente se temos esse domínio da construção de uma narrativa única. Vou além, no caso de uma cinebiografia ou da escrita de uma biografia, essa construção do que somos é fruto da real experiência ou ela passa pela visão do outro? Quando passa pela visão do outro, no caso da pessoa escritora biógrafa ou romancista, essa existência narrada não poderia estar marcada também pela existência de quem se propõe a contar? Ou seja, a biografia de alguém não poderia estar impregnada da biografia de quem a escreve?

Entrei em um campo minado da teoria da História em que se guerrilha por uma historiografia, ou seja, baseada em documentos na construção de fatos ou por uma narrativa do testemunho daqueles que viveram ou vivem os processos históricos. É uma disputa de poder, principalmente, quando estamos diante de um mecanismo e exercício de poder no mundo que é escrever. Escrever não é um dispositivo dado a toda pessoa. Sentar e escrever é um ato que exige política e situação socioeconômica considerável. Geralmente, os processos históricos são contados pelos “vencedores” da História. Sabemos que nem sempre os ditos vencedores estão, eticamente, ligados ao lado correto da História. Questionar quem conta a história dos processos sociais e políticos no mundo tem feito tremer desde a historiografia aos processos literários. A escritora nigeriana Chimamanda Adichie tem um texto importante que traz a discussão sobre esse tema em “O perigo de uma histórica única” (2019). Nesse texto, Adichie questiona quem está narrando aquela história. Esse questionamento é de importância basilar para a desconstrução de sujeitos cristalizados, hetero-cis-normativos e eurocentrados, e defende que a vez de falar seja dada a outras vozes negligenciadas, em muitos casos, propositalmente, na linha da História. O poder da História está na voz que fala sobre a História. Então, tomar sua existência como mote de poder é invocar, como em um ritual de magia, o direito de falar.

Enfim, tem importância quem conta a história de alguém? É a pergunta espinhal que passa a nos martelar por aqui. O resgate de uma identidade perdida pode ser feito por uma identidade em similaridade como uma espécie de “justiça social da memória”? Vamos a outro exemplo que despertou em mim essa discussão. Recentemente, o escritor Alexandre Rabelo lançou seu mais recente livro, o romance-invocação, Miss Macunaína pela Editora Record. O romance é sobre os últimos dias de vida do escritor Mário de Andrade, mas não é uma biografia tradicional. Pelo contrário, Rabelo traz uma nova faceta de Mário de Andrade não explorada em biografias passadas. Em Miss Macunaíma, o escritor resgata pontos esquecidos do autor de “Macunaíma”, como a sua ascendência africana e a sua homossexualidade. Toda a construção do romance é realizada por meio de cartas escritas por Mário de Andrade aos amigos Tarsila do Amaral e Carlos Drummond de Andrade ou cartas imaginadas por Rabelo a outras pessoas e que tem como gatilho a crítica pública feita por Oswald de Andrade com título de Miss Macunaíma com a intenção de usar a homossexualidade de Mário como uma maneira desmoralizante. A partir dessas cartas, o escritor e historiador, Alexandre Rabelo vai desvelando um Mário de Andrade com uma identidade jamais vista por nós anteriormente, como se buscasse por meio de uma invocação um empoderamento roubado à época de Andrade em resposta ao ataque homofóbico desferido no jornal. Fruto dessa invocação onírica, diante dos nossos olhos vai se desvelando, em “Miss Macunaíma”, um Mário de Andrade resgatado, dignificado, poderoso e gigante, não apenas por sua obra de trabalho literário complexa como conhecemos, mas por sua identidade negra, homossexual e afrontosa, ou seja, o Mário de Andrade de Rabelo é maior que a sua própria obra, é uma identidade.

Essa construção original do escritor Alexandre Rabelo traz temas importantes. Há dois que gostaria de discutir porque tangem à questão da identidade e das maneiras como ela pode ser construída. O primeiro é o lugar de quem narra a história sobre o outro. Localizar esse corpo de quem conta a história. O livro é construído por um escritor do “entre”, ou seja, constituído no espaço geográfico hibridismo de ser mineiro e ser paulistano; de ser escritor de literatura e ser historiador. Rabelo nasceu de Minas Gerais, cresceu na periferia da cidade de São Paulo, com formação sólida em História, e com histórico na literatura LGBT+ brasileira e pertencente à classe trabalhadora. Só esses poucos, e imensos, componentes já são suficientes para sensibilizar o autor em um olhar diferenciado na construção de Mário de Andrade. O segundo é o lugar de quem é narrado. É uma consequência da primeira categoria, pois só funciona se o autor estiver sensibilizado e consciente da sua experiência de mundo para conseguir, em um exercício refinado de empatia, perceber a existência de um outro e transportar para narrativa. Será que se o autor Rabelo não estivesse atravessado por tantas camadas interseccionais o Mário de Andrade de Miss Macunaíma teria sido invocado? Ou teríamos mais um Mário de Andrade recortado da sua importância de existência primeira e teríamos apenas o profissional de Andrade mais uma vez – mais do mesmo – reportado? O Mário de Andrade invocado por Rabelo só foi possível porque houve a oportunidade de um sujeito furar todas as barreiras existenciais, sociais, acadêmicas e políticas do escrever literatura e conseguir trazer essa identidade do autor e agitador modernista. O que nos mostra cabalmente a importância da vez de quem conta uma história. Apesar de o livro não ter a pretensão de ser uma biografia oficial ou tradicional e científica como conhecemos academicamente, o “romance-invocação” de Rabelo joga luz em como e o que vão dizer de nós. Mário de Andrade já havia sido contado por outros escritores e escritoras com corpos e posições sociais completamente elitizados. Em “Miss Macunaíma” foi a vez dessa cristalização da identidade do autor modernista derreter e um corpo interseccional cortado contar essa história e dar a resposta à crítica de Oswald de Andrade.

Voltamos às críticas contra a decisão de Madonna para encerrar. Errada não está de tomar para si o que quer dizer sobre sua identidade em um mundo machista e misógino. Madonna não vai esperar o tempo e a generosidade, no futuro, de alguma escritora, a la Rabelo, ter a oportunidade de entendê-la e responder sobre o que disseram dela. A luta pela memória e identidade está em jogo e existências como as nossas estão aí para furar barreiras e dizer, sim, quem fomos e somos. Por mais Mários de Andrades como em “Miss Macunaíma”, por mais Madonnas tomando as rédeas das suas existências. Miss Macunaíma, presente!

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Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. O OLHAR DA ALTERIDADE: “O INFERNO SÃO OS OUTROS”. Itinerários, Araraquara, n. 33, p.243-252, jul./dez. 2011

SARTRE, Jean. Entre quatro paredes. São Paulo, Abril Cultural, 1977

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em Teoria Literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França. Contato: danielmanzoni@gmail.com

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