* Por  Ronaldo Cagiano *

Obra vencedora do Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, como o melhor romance brasileiro de 2018, Por cima do mar (Ed. Patuá, SP) , de Deborah Dornellas, carioca radicada em Brasília, é uma obra pungente e ao mesmo tempo poética sobre uma saga e fala de deslocamentos, tanto geográficos quanto psicológicos, que tem na voz e na vida de Lígia Vitalina, o letimotiv da tessitura narrativa.

A personagem percorre o imaginário de dois continentes, a partir de seu estuário de sensações, percepções e experiências vivenciais, de quem passou a infância, sendo pobre e negra, na periferia de Brasília, cidade satélite de Ceilândia, mas cujo trânsito extrapola-se para um cenário de mundividências, transculturalismo e simbioses emocionais.

Vivendo em Angola, Lígia foge ao estereótipo dos socialmente apartados pela condição social e raça, pois conseguiu superar as contingências da origem e afrontar os estigmas impostos pela idolatria disseminada da meritocracia, pois sua ascensão se dá pelo esforço e arrostando todas as referências de improbabilidade de seu meio. É mulher aguerrida, lutando contra os preconceitos, limitações e passivos sociais, torna-se historiadora formada pela Universidade de Brasília, sai do anonimato e invisibilidade para um protagonismo de ideia e ação. Interpolando cenas recorrentes na memória da protagonista, fatos da infância e adolescência vão surgindo como pano de fundo para expor os apartheids que ainda perduram em nossa conflagrada sociedade, sobretudo o racismo, a violência contra a mulher, a perseguição a minorias e a tragédia imutável das desigualdades.

Entre Brasília e Benguela, espaço que Lígia cruza literalmente “por cima do mar”, num itinerário que vai deslindando as semelhanças e dissonâncias entre dois países, é do alto que tornam-se mais visíveis, metafórica e intimamente as cicatrizes que nos delimitam e segregam histórica e socialmente e povoam seu inconsciente.  Nesse contexto, em que mesclam-se flashbacks sobre a sua vida e dos bastidores da construção da Nova Capital, deslinda-se um processo mnemônico em que é tênue a fronteira entre o real e a invenção, num processo fragmentário mas coerente de verossimilhanças. Nesse particular afirma-se a habilidade ficcional da autora que, com fluência e sofisticação estilística,  vai tecendo uma delicada colcha de retalhos sobre os dilemas existenciais e a imagem da cidade e do país –, e o romance realiza um mergulho profundo e catártico na realidade de dois continentes divididos pelos seus abismos de classes, livro ricamente ilustrado por Deborah, incluindo epígrafes e vinhetas que dialogam com obras, autores e as mitologias de matriz africana.  Ao fim, o livro ainda traz um preci(o)so glossário que, para além de informar ao leitor as nuances dialetais, funciona como simbologia de interrelação entre falas, usos, tradições e costumes e uma conectividade entre nossas dicções, espelhando o vastíssimo oceano da língua portuguesa.

Nessa costura entre passado e presente, da infância pobre de filha de operários que ajudaram a erguer a cidade e moravam precariamente na Vila do IAPI à maturidade em Angola, Lígia constrói uma prosa originalíssima e arrebatadora como temática e como linguagem. Mais que uma abordagem sobre a vida de uma personagem negra digladiando com questões cruciais que a atormentam, é também uma olhar necessariamente contundente e reflexivo sobre o destino de tantos povos e nações que amargam, por conta de sua ancestralidade, uma terrível sensação de serem sempre estrangeiros (ou refugiados) na própria terra, expondo nossas fraturas e fissuras.

Por cima do mar, numa linguagem vigorosa, poética e instigantemente questionadora da nossa gênese e com sua inegável potência semântica, estende uma ponte dialética, sobretudo nesses tempos de obscurantismo e medievalização que estamos a viver no Brasil, e ajuda-nos a entender a identidade brasileira a partir das genuínas (e sofridas) feridas tatuadas em nossas raízes e consciências e revela uma escritora em pleno domínio de seu ofício.

*

Por cima do mar, de Deborah Dornellas (Editora Patuá, 344 págs.)

*

Ronaldo Cagiano é escritor mineiro-brasiliense, reside em Portugal

*

Trecho:

“Sobrevive entre as mulheres negras a ideia de que, por ser preta e de origem pobre, uma mulher tem que ser sempre forte e aguentar tudo, sem sucumbir. E sem pedir ajuda. Minha mãe nunca me disse isso com todas as letras, mas sempre agiu como se esse comportamento estivesse subentendido. De tia Maria, ouvi absurdos a esse respeito. Minha tia não segurava palavra. Era uma tagarela para os padrões mineiros. Mas mãe e tia não foram as únicas que me incutiram essa crença estúpida, da qual elas próprias devem ter sido vítimas a vida toda. Vi e ouvi muitas vezes mulheres e homens negros, no espaço familiar, na vizinhança, nas rodas de amigos, falando e agindo como se para nós, pessoas negras, não houvesse a possibilidade da fragilidade.”

***

A revista literária São Paulo Review é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade, que precisa de sua ajuda para sobreviver. Seguem nossos dados bancários, caso resolva contribuir com qualquer quantia:

Banco Bradesco

Agência: 423

Conta corrente: 96.981-8

CNPJ:  07.740.031/0001-28

Se contribuir, mande-nos um e-mail avisando. Seu nome, ou o nome de sua empresa, figurará como “Nosso Patrono”, na página ‘Quem somos’ do site. Para anúncio, escreva-nos também por e-mail: saopauloreview@gmail.com

Tags: , , ,