* Por Paulo Scott *

Terminei o vinho em três emborcadas. Levantei, apaguei a luz do salão de festas, saí, fui até o porteiro, pedi pra ele entregar a taça pra Bárbara, agradeci, desejei bom trabalho. Ele agradeceu, destravou a porta. Saí do prédio, caminhei pela Álvaro Alvim até a Dona Leonor e depois até a esquina com a Protásio Alves, onde ficava o Al Nur, restaurante que eu e Bárbara costumávamos frequentar no final dos anos mil novecentos e noventa. Entrei, pedi três esfirras de carne e um guaraná. Travolta me mandou um WhatsApp dizendo que já tinha saído do cinema e perguntando se podia me ligar. Eu disse que deixasse, que eu ia ligar pra ele. Liguei. Ele estava com a noiva. Foi engraçado ouvir a voz dele falando noiva. Perguntei se ele sabia dum lugar qualquer no Partenon onde os frequentadores fossem estudantes, que a clientela fosse a juventude na faixa dos dezoito a vinte e cinco anos. Quer traçar uma universitária, Caralho, Isso é muito sagaruga índia, seu canalha, Canalha, falou. Disse pra ele não falar merda, que não era nada daquilo, só queria saber como era o novo Partenon, saber aonde iam os universitários do meu bairro, coisa que não existia no nosso tempo. Ele riu, disse que ainda bem que as coisas mudavam. Pensei em dizer pra ele que sim, as coisas mudavam, e a maior prova de que as coisas mudavam era justamente ele, o mais preguiçoso e arregado da turma do meu irmão, ter se tornado um traumatologista de respeito, mas deixei passar. Tem um lugar que abriu faz uns dois anos, o Guitarreiro, que é um bar com palco, onde acontece um monte de show legal, É um bar de samba-rock, mas o que mais rola por lá é show de rap, Já fui lá umas vezes com a Suzana, Fica na rua Santa Maria, ele disse. Falei que daria um pulo lá então. Ele disse pra eu ficar esperto, pra ir de táxi, fez questão de observar que, diferente de mim, ele continuava no bairro e, por isso, como morador do bairro, o que tinha a me dizer era pra eu tomar cuidado, principalmente no São José. São José era o bairro onde ficava a rua Santa Maria, bairro limítrofe ao Partenon, considerado por todo mundo da Leste como parte da Grande Partenon. Explicou que o São José não estava brinquedo, que, a exemplo do que estava acontecendo com toda a Porto Alegre, cidade onde bandido podia entrar tranquilamente no aeroporto e executar a sangue-frio o desafeto no saguão da área de desembarque, sair caminhando e escapar numa boa, não dava pra chegar dando mole depois das dez da noite. Agradeci os conselhos, disse que esperava encontrar com ele em breve. Largou o seu tradicional vê se não te mata. Respondi com um vê se não te mata também. Desligamos. Comi as esfirras, não cheguei a tomar todo o guaraná da garrafa. Pedi a conta, paguei, saí. Na Protásio Alves tomei o primeiro táxi que passou. O motorista estava de pilcha, pilchado a caráter mesmo, bota, bombacha, guaiaca, camisa branca, lenço vermelho, chapéu de feltro barbicacho. Perguntei se era maragato ou torcedor do Internacional. Ele respondeu que não era nem um nem outro, disse que gostava do vermelho porque vermelho era uma cor boa de usar quando se trabalhava à noite como ele, era a cor da capa de São Jorge, uma cor que afastava o mal, e perguntou se eu já tinha ido no Acampamento Farroupilha no Parque Harmonia daquele ano. O acampamento era montado no dia sete de setembro e ia até o dia vinte, que era o Dia do Gaúcho, do orgulho de ser gaúcho, dia de comemoração da Revolução Farroupilha. Eu disse que nunca tinha ido. Ele falou que eu estava perdendo porque era uma energia muito saudável, a gauchada irmanada celebrando o esforço empregado numa das guerras mais épicas e sangrentas da história do nosso país. Sangrenta, Só se tiver sido pros negros, que foram traídos pelos proprietários rurais e pelas lideranças políticas, eu disse. Não acredito nesta versão, ele disse, Sou de cor e me sinto muito bem representado nas comemorações da Semana Farroupilha, Os escravos lutaram ao lado dos brancos e lutaram por liberdade e deram suas vidas por um Rio Grande do Sul livre da opressão, livre da exploração do Império, Não nos dobramos, Isso é o que importa, argumentou. Respeito sua versão, E acho bonita a comemoração do Vinte de Setembro, mas a verdade é que nós perdemos a guerra e que se houve algo de sangrento foi sangrento de verdade só pro lado dos pobres, dos escravizados, que foram, sim, traídos pelo Canabarro e por outros líderes da revolução, como o Bento Gonçalves, eu disse. E estávamos justo na avenida Bento Gonçalves naquele momento. Bento Gonçalves morreu rico, inclusive deixou escravos pros seus herdeiros, como têm mostrado os novos historiadores, E a guerra, Não foi uma das guerras mais sangrentas, Teve outros conflitos bem mais sangrentos no Brasil, Outra coisa que não é verdade é a versão de que foi uma revolução iniciada em defesa de grandes ideais, Como folclore até dá pra aceitar a imagem, mas o que se sabe hoje é que houve muita coisa ruim do lado dos farroupilhas também, eu disse. O táxi passou pela puc e mais adiante entrou na Santa Maria. E só pra concluir, senhor, eu disse percebendo que ele não estava gostando nada do que eu estava dizendo, Hoje também se sabe que o decreto de anistia e todos os outros decretos do Império que favoreceram os líderes rebeldes, a elite sulista, em momento algum previram a libertação dos escravos que lutaram, Eles foram colocados à disposição do Império, tratados como homens escravizados que eram, como mercadoria, eu disse. O taxista parou na frente do bar, deu o preço da corrida. Paguei, agradeci. Desejei boa-noite. E ele não respondeu.

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O trecho faz parte do romance Marrom e amarelo, e foi cedido pela editora Companhia das Letras/Alfaguara.

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Paulo Scott é autor de diversos livros, entre eles Ithaca road e O ano em que vivi de literatura.

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