Por Eduardo Sabino *

Alguns debates atuais me lembram aquelas provas de múltipla escolha do ensino médio em que as grandes questões do século devem ser distribuídas como falsas ou verdadeiras em duas colunas simétricas. Nas discussões sobre a representação do outro, especialmente quando esse outro é de gênero, classe, cultura diferente do autor/autora, é normal vermos posições de radicalismo nas duas colunas.

  • a ideia de que o autor não deve sequer tentar ir além de si mesmo. Buscar o ponto de vista do outro será necessariamente um ato opressor e alienado, um fracasso certo e vergonhoso.
  • a ideia de que a literatura é livre do meio social onde é gerada. Aqui, todo apontamento em direção a uma visão distorcida do outro e de seu mundo é visto por artistas em lugares de privilégio como moralismo e patrulha.

Antes de tudo, para mim, literatura é empatia. Criar personagens é uma forma de imaginar o outro, imaginar-se no outro. Podemos vê-lo com compaixão, indiferença ou desprezo. Personagens serão mais ou menos artificiais conforme o autor-autora for mais ou menos feliz no salto para fora de si.

Não somos o outro, eis uma constatação. Então nos resta buscá-lo, reinventá-lo, com os riscos e as impossibilidades da representação ideal. Com que se preenche essa distância às vezes quase intransponível? Talvez o ponto determinante seja a vivência, a memória, o conhecimento real do espaço e dos tipos humanos recriados. Mas na balança deve entrar também o peso da invenção e da sensibilidade.

Em O defensor, de G K Chesterton, livro de 1901 que teve nova edição brasileira neste ano pela Ecclesiae, encontramos uma série de ensaios em defesa de coisas miúdas, comuns ou esdrúxulas. Dotado de um gênio forte, Chesterton escreve com eloquência e faz defesas que às vezes só se sustentam no campo da retórica – ainda que sejam de uma beleza incrível em termos de inventividade. Ao longo do livro, o autor sai “em defesa das novelas de um centavo”, “em defesa das promessas temerárias”, “em defesa dos esqueletos”, “em defesa da veneração pelos bebês’, entre outros ensaios que vão do banal ao sublime. O ensaio mais interessante à discussão sobre literatura e empatia está na página 79: “Em defesa da humildade”.

Para Chesterton, olhar com e através do outro, aprender a partir dele, é uma abertura fundamental ao sujeito pensante.

As pessoas tendem, por um processo perfeitamente natural, a elevar seus próprios dons humanos de cultura, intelecto ou força moral a uma grande perfeição, excluindo eficazmente tudo o que percebem como inferior a si mesmas. Ora, está muito bem excluir as coisas, mas isso tem um corolário simples – que nós mesmos somos também excluídos de tudo o que excluímos.

A seguir emenda, com uma ilustração bem-humorada:

Um besouro pode ou não ser inferior a um homem – o assunto aguarda demonstração; mas, mesmo que fosse inferior por dez mil braças, persiste o fato de que, provavelmente, existe uma forma do besouro ver as coisas da qual o homem é completamente ignorante. Se desejar conhecer este ponto de vista, dificilmente conseguirá fazê-lo deleitando-se persistentemente com o fato de que não é um besouro.

Buscar um outro olhar, ainda que seja o de um inseto, não é tarefa das mais fáceis. Meu inseto favorito da literatura universal é Gregor Samsa, mas Gregor é um humano em corpo de inseto, então não vale. Tchekhov entrou na cabeça da cadela Kachtanka e nos revelou seus medos, alegrias e esperanças. A cachorra Baleia, de Graciliano, morreu sonhando com um mundo cheio de preás – numa cena lindíssima.

Tchekhov é um mestre da empatia. Seus personagens estão quase sempre muito vivos. Foi, sem dúvida, um grande observador das pessoas de seu tempo e cultura. Não acho, porém, que isso vale para todos os seus contos. Não gosto, por exemplo, de “Os mujiques”, produzido na última fase do autor, quando suas narrativas ficaram mais longas e perderam os traços de humor dos textos mais breves da fase inicial. Acompanhamos, no relato em questão, a vida amarga de uma família de mujiques (camponeses pobres). Destoando de muitos contos de Tchekhov, os personagens aqui são rasos, reduzidos a algumas ações e sentimentos. O marido bêbado, a esposa frágil e conformada, a avó rancorosa e cruel. Todos vivem praguejando. Como não oscilam em seus conflitos e sentimentos, soam inertes, estéreis, previsíveis.

A vila onde moram é descrita sempre com desprezo: um lugar sujo, sombrio, detestável, onde ninguém está satisfeito com nada. Incomoda um certo juízo de valor que atravessa a narrativa em relação aos pobres, seu comportamento, a vida que levam em comunidade.  Tolstoi, que admirava Tchekhov, também não agradou desse conto na época. Resumiu-o como “uma ofensa ao povo russo”.

Em Jeito de matar lagartas (Companhia das Letras, 2015), Antônio Carlos Viana dá mais um exemplo de seu talento e força na composição de histórias curtas. Talvez seja um dos nossos grandes mestres do conto em atividade. Nessa coletânea, temos histórias concisas e densas, girando em torno principalmente do tema da infância e da velhice. Em alguns contos, entretanto, há personagens femininas estereotipadas, construídas sem muita empatia, para ficarmos nesse eufemismo. Mulheres que abrem mão de sua humanidade para serem simplesmente o produto de uma visão masculina sobre elas.

No conto “Dona Katucha”, narrado em terceira pessoa, a personagem-título é uma mulher entrando nos sessenta anos. Agora não mais desperta os olhares dos homens, e isso a enlouquece. Afinal de contas, Katucha não recebe mais cantadas na praia, nem investidas, ninguém se habilita a passar a mão em seu corpo. Suas lembranças da escola tentam construir uma mulher-objeto que gostava, desde adolescente, do assédio dos homens.

Ainda se lembra como os colegas de colégio passavam a mão e ela gostava. “Nasci para ser puta, mas o destino não deixou”, ela conta para quem quiser ouvir. Um dia foi chamada pelo diretor: “Katucha, apareça na diretoria”. E o próprio diretor acabou comendo-a no carro dele.

Dona Katucha não tem – e parece que nunca teve – interesse algum na vida que não seja trepar com os homens, e protagoniza cenas de um artificialismo incrível. Neste conto a imaginação do autor, ainda que se trate de Antônio Carlos Viana, a quem admiro, não conseguiu se desvencilhar dos estereótipos. A objetificação de Katucha é vista sem questionamentos ou indícios de senso crítico, com naturalidade e até humor, reproduzindo a visão machista vigente na sociedade.

Quando um personagem não vai além de uma imagem superficial, um texto tecnicamente bom, de ritmo impecável, acaba perdendo valor estético. Deixamos de acreditar em Katucha, não enxergamos nela a nossa complexidade e riqueza humana, mas a materialização artificial de um discurso opressivo.

Claro que a crença na ficção varia conforme o leitor. Como nos stand ups e nas grandes produções do cinema, existe o público que não só acredita em figuras unidimensionais, mas também partilha com os autores os preconceitos expostos e ocultos.

De minha parte, não consigo mais separar ética de estética. Ou estética de política. Vejo na literatura uma oportunidade de emancipação. De provar a vida do outro. De confrontar os estereótipos, lugares comuns e ideologias opressoras. De me entreter – por que não? – ter uma experiência que seja, de alguma forma, prazerosa e comovente. Cada leitor escolhe seus critérios. Os meus passam por aí.

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Eduardo Sabino é escritor, editor e jornalista, autor do livro Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século, 2009).  Mantém o blog “Solo Insólito” no endereço eduardosabino.com. É colunista da São Paulo Review

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