* Por Sérgio Tavares *

É provável que o leitor brasileiro seja perseguido por uma sensação de déjà-vu ao atravessar os contos de A fúria, de Silvina Ocampo.

Sessenta anos depois de sua primeira edição, o volume (finalmente!) chega ao Brasil num momento em que discípulas da escritora argentina, a exemplo de Samanta Schweblin e Mariana Enriquez, têm seus livros celebrados por conta de um estilo e de uma predileção temática que cunharam a literatura de Ocampo.

É um desses casos inusitados no qual o mercado editorial acolhe uma nova linhagem de autores (que, diga-se de passagem, estão em voga por total merecimento) sem ter publicado pilares da geração anterior que lhes exercem irrestrita influência.

O atraso cria-se, portanto, uma falsa ideia de expansão de universo, quando se trata da origem desse universo.

Nos 34 relatos que compõem a antologia, estão em plena vigência os mecanismos que servem de estro para as autoras supracitadas e tantas outras da literatura cisplatina: a subversão da normalidade, a incursão do insólito no cotidiano, a exploração de uma atmosfera sobrenatural entre o sonho e o delírio.

Ainda assim, as propriedades de Ocampo seguem intransferíveis. Seus textos são crias de uma escritura que, embora singular e identificável, vagueia entre a tradição e a vanguarda, experimenta na forma e no conteúdo, faz do estilo um aspecto de gênero.

É limitado reduzi-los ao gênero fantástico, pois o que está fora do comum resulta de ações essencialmente humanas, de investigações de um mal que habita infernos morais e dimensões psicológicas. O aspecto sombrio decorre de terrores vinculados a transferências oníricas, vaticínios, seres e objetos de significados sinistros.

A perversão da infância é o interesse primado. Crianças têm ora papel de vítima, ora de algozes; ora são ingênuas, ora são cruéis. A maldade é, em muitas das vezes, uma contraparte da consciência que cria um relato dúbio, cifrado, entregando um labirinto de conjecturas ao leitor.

A engenharia dos contos parece guardar mais do que se pode ver, como algo insidioso que espia por detrás das frases.

Na biografia escrita por Mariana Enriquez, o talento e a personalidade de Ocampo são bem definidos em duas imagens: uma escritora de “imaginação desaforada”, que viveu “pelo afã de permanecer oculta”.

Casada com Adolfo Bioy Casares e amiga íntima de Jorge Luis Borges, ela se escondeu sob a fama de ambos, mesmo quando participou de um dos acontecimentos seminais da cultura latino-americana: o lançamento da Antologia da literatura fantástica.

A publicação de A fúria, mesmo que a contragosto, joga luz sobre essa extraordinária escritora, cujos contos são melhores que os de seu marido e de seu melhor amigo.

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A fúria, de Silvina Ocampo (editora Companhia das Letras, 224 páginas)

Avaliação: Ótimo

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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