Resenha: o cinebook do Antonio Xerxenesky

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Por Viviane Ka *

Antonio Xerxenesky, em seu último romance, F, faz o que se pode chamar de livro-cinema. As artes, música, filmes, literatura se espelham umas nas outras e o autor faz o que sabe: escrever. Não importa o que é arte, o que é cultura pop. A prosa clara nos puxa rapidamente para dentro do seu universo. É uma escrita nômade. Os personagens estão o tempo todo se movendo, no tempo e no espaço. Nada é estático, nenhum lugar permanece, nenhum sentimento é revelado, seja bom ou ruim. A narrativa é gélida como uma faca, impessoal como um estupro. As palavras, como balas de uma gluger, perseguem obstinadamente a história que o autor se propôs a contar.

Ana, garota com vocação para o assassinato. Por aqui, aparecem lapsos do escritor Haruki Murakami em 1Q84, homens escrevendo como se fossem mulheres, mulheres frias e solitárias assombradas pela violência do sexo. Talvez o ideal do imaginário masculino seja personagens antirromânticas, retratadas como criaturas cibernéticas de quadrinhos, não é estranha a ambientação dos dois livros nos anos 1980. Por isso, tantas referências às músicas desse tempo.

Ao contrário do free jazz e do virtuosismo do rock progressivo dos anos 70, o som dos anos 80 é estético, desesperado, sintetizado em canções pop de pegada dançante. Antonio sabe que não se faz boa história sem uma pista de dança. E F tem festas decadentes bem descritas. Banheiros, drogas, solidão. A frieza da protagonista combina muito bem com os sintetizadores da banda Soft Cell, mas tudo se justifica. O silêncio exterior distingue-se na paisagem noturna da insônia provocada pela avalanche de pensamentos, a impressão de que não existe mundo lá fora, só a possibilidade da narrativa como extended mix feito para durar noite afora.

F pode ser considerado um romance de deformação. A corrompida infância de Ana, garota salva pelos livros, a adolescência descolada de pares, certo clima onírico na construção da personagem. Existe a força da narrativa em primeira pessoa, é muito difícil ser íntimo em terceira pessoa. A atmosfera de sonho remete ao filme Meia noite em Paris, de Woody Allen e usa da mesma liberdade, a ficção é um lugar possível. É preciso matar as sombras da genialidade dos outros para a criação individual acontecer. Quem gosta de ler e de assistir a  filmes sabe que quase todos os momentos de vida merecem uma citação ou uma lembrança de cenas antológicas.

Do cinza verde-amarelo dos anos de ditadura ao preto do pós-punk gótico, todas as referências às obras de arte, tanto de cinema quanto de literatura têm entusiasmo juvenil. A impressão é que o autor pesquisou bastante seus interesses para montar diálogos. A cena de Orson Welles chegando de cadeiras de rodas no restaurante com seu cachorro Kiki no colo é digna de estar num filme. E é em cinema que F estará. Os direitos da obra foram comprados por Rodrigo Teixeira. Resta saber se acompanharemos apenas a trajetória de Ana, ou leremos-veremos uma metáfora sobre a arte.

F (Rocco), de Antonio Xerxenesky

Avaliação: bom

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Viviane K é escritora, autora de 10 mandamentos para a felicidade sexual da mulher; é editora-chefe da revista São Paulo Review

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