Pedras do caminho

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Leia trecho inédito do romance Tempo de espalhar pedras, de Estevão Azevedo, que chega às livrarias no dia 8 de setembro pela Cosac Naify.

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Num garimpo de diamantes sem tempo nem espaço (Minas Gerais? Século xix?) os homens que ali depositaram suas esperanças em um golpe da fortuna que lhes abolirá a miséria começam a sentir a materialidade do fracasso: a terra não dá mais diamantes e ninguém sabe muito bem o que esperar da vida erguida em torno do garimpo. Homens e mulheres brutos, em perene batalha, tecem um áspero tecido, com o qual envolverão a matéria dura– feita de pedra e rancor – em que Estevão Azevedo esculpirá este Tempo de espalhar pedras.

O autor, em cujo primeiro romance (Nunca o nome do menino, Terceiro Nome, 2008) investigava a estrutura do romance pela voz de uma narradora que se descobre personagem de um livro, aqui usa a linguagem – seca como o garimpo, exuberante como todas as referências que o bom leitor logo encontrará – como matéria prima para a construção de uma intriga intensa e surpreendente.

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Trecho

“O afoito concede poderes, dá ao outro o controle do tempo, e no trato com Rodrigo disso Ximena muito se aproveitava. O escoicear do amante não costumava afastá-la, não temia machucar-se, até gostava, excitava-a a tarefa sempre inconclusa de domesticá-lo. Vendo o estado alterado de Rodrigo, Ximena preparou-se para, com uma palavra fugidia, hesitação fingida ou agressão controlada, meter-lhe a sela. Para sua surpresa, no entanto, Rodrigo com um safanão derrubou o cesto de sua cabeça e antes que as frutas iniciassem um passeio pela terra, segurou-lhe o pulso e começou a arrastá-la para longe dali. Ela tentou cravar os pés no chão e ensaiar um protesto, mas ele nem ouvira. Ela desistiu e começou a segui-lo.

A resistência inicial de Ximena fez com que Rodrigo se lembrasse do corpo que pouco antes não fora capaz de arrastar, e estabeleceu, nos redemoinhos de seu pensamento, um estranho vínculo entre pai e filha, o corpo de ambos desarticulado e com vocações para boneco de pano, ambos carentes da chama que os fazia vencer a atração mórbida que exercia a terra, e por isso propensos a satisfazer o vício de obedecer somente ao próprio peso. Súbito, porém, o corpo maciço de Ximena se reanimou e Rodrigo percebeu que não precisava mais se esforçar para levá-la. Seu corpo, o realizador do milagre, e por isso a ressurreição inesperada aguçou ainda mais seu desejo: para ser por ele possuído, um outro corpo renegara a morte. Depois de um bom tempo de caminhada silenciosa, num lugar de mato mais baixo e com árvores, Rodrigo conduziu-a para fora da estrada e deteve-se já bem longe de qualquer trilha. Postou-se de frente para Ximena e beijou-a, ao mesmo tempo que suas mãos erguiam a barra do vestido e sem delicadeza afastavam-lhe as pernas. A histérica necessidade de aderir ao solo, que antes a violência extraíra do corpo de Gomes e emprestara a Ximena, agora se alojava, atraída por seus movimentos coléricos, no corpo de Rodrigo, que se desengonçava. Os dois caíram. As mãos de Rodrigo machucavam-na como nunca antes, mas ela não se queixava, no ímpeto inelutável com que ele tentava saciar-se ela acreditava encontrar algo de que nem sabia estar à procura. Fora para isso que, sem o saber, ela tantas vezes o obrigara à coreografia da dissimulação: para tê-lo ainda menos humano. Essa revelação encerrou-lhe a mudez. Primeiro aos sussurros, em seguida aos berros, como se o elogiasse, ela cuspiu em Rodrigo o nome dos bichos rastejantes e seus diversos apelidos, uma lista interminável composta de palavras comuns, presentes na fala dos mateiros, e daquelas ouvidas somente uma vez, raras, usadas em outras paragens ou criadas por alguém de palavreado moldado pela ignorância, pela falta de dentes, por algum retardo ou pela bebida, e que dos recônditos de sua memória eram regurgitadas. O furor tapava os ouvidos do homem recém e excessivamente batizado e a ladainha pouco compreensível não só não era incômoda como ganhava tons de incentivo, por isso ele não reparou que o repertório se alterara e designações de tudo que fosse maculado, sórdido, imundo ou enodoado, de tudo que fosse quisto, chaga, cancro, úlcera, tumor, ferida ou câncer eram-lhe pregadas à pele. Entre gemidos, Ximena sem muito esforço repassava diversas das centenas de alcunhas do tisnado quando Rodrigo sentiu-se morrendo como nunca antes e atingiu o limite pela primeira vez. De alguma prodigiosa maneira, transformara-se em oráculo a gruta úmida de Ximena, e era aquele vislumbre de inexistência um anúncio da sentença fatal? Ximena precisou respirar, calou-se, e ficaram assim, peito de um empurrando peito do outro.

Quando se refez, Rodrigo ameaçou se afastar, mas temeu que a separação o precipitasse naquilo que pouco antes antevira no limiar de seu fôlego e de sua força, e por isso prendeu-se outra vez a ela com suas ventosas. Percebeu as folhas, os insetos, os galhos e toda uma vida mínima, quase invisível, colados ao seu suor e à saliva com que Ximena o cobrira. O corpo sujo e o sangue nas mãos e, uma vez saciado, ainda incapaz de inebriar-se com a sede e a fome e a cobiça que ela lhe despertava. Apto, portanto, a toda sorte de infortúnio que só aquela expiação impedia. Era inadiável ser novamente vítima daquela possessão, era absolutamente necessário para afastar a insânia, para limpar com mais poeira e folha e fluidos a mancha que tomava conta do corpo e do entendimento, que advinha da lembrança do assassínio; seu corpo o salvaria se novamente assumisse o controle, se o obrigasse a aceitar a pior injúria, a mais vil acusação, a perfídia travestida de amor, tudo isso apenas para fazê-lo capaz de se satisfazer por alguns míseros segundos. Era preciso que a flacidez de seu totem desaparecesse e foi por isso que Rodrigo, endiabrado, rolou sobre o corpo de Ximena e sobre ela esfregou-se durante o longo tempo entre a expulsão de seus fantasmas e a nova experiência de morte.”

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Estevão Azevedo nasceu em Natal, no Rio Grande do Norte, e vive na cidade de São Paulo. Formado em jornalismo e letras, é editor e escritor. Publicou seus primeiros livros, O terceiro dia (2004) e O som do nada acontecendo (2005), ambos de contos, pelo coletivo Edições K, que reuniu autores de diversas cidades do país. Seu primeiro romance, Nunca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Tem contos publicados em revistas e na antologia de escritores brasileiros Popcorn unterm Zuckerhut – Junge brasilianische Literatur, lançada em 2013 na Alemanha.

Sessão de autógrafos em São Paulo: 18 de setembro – quinta-feira – das 19h às 22h, Livraria da Vila – Rua Fradique Coutinho, 915