Ilustrações inéditas de Elvira Vigna

ww-a5detalhe

Por Elvira Vigna *

Esse projeto de ilustração é de um poema longo chamado Duas casas, da Roseana Murray. Sua publicação, pela editora Lê, está prevista para o ano que vem.

A história, muito simples e dirigida a adolescentes, fala de duas crianças. Elas precisam dividir seus dias entre duas casas, após a separação dos pais. Ora estão em uma, outra noutra, nenhuma das duas, em princípio, satisfatória. Justamente por não conter a outra.

Fui encarregada das ilustrações para o poema.

O poema é de leitura simples, mas é rico, como em geral são os textos de Roseana.

Me interessou o caminho de ligação entre as duas casas.

Tem uma teoria, abordada por Agamben em seu livrinho O que é o contemporâneo?, que diz que o escuro não é o escuro.

ww-a02

Ele baseia isso em várias instâncias, incluindo uma biológica: as células cones e bastonetes de dentro do olho, na presença da luz, implementam uma destruição de pigmentos. Essa destruição gera uma energia que vai para o cérebro e é lida como “visão”. A ausência desse processo é a ausência de uma destruição. Ou seja, duas negativas resultando em um positivo. Ou seja (pela segunda vez), há uma possibilidade de se entender uma outra “visão”, ativa, ou já lá anteriormente, que se relaciona com o escuro da mesma forma que a primeira se relaciona com a luz. Ou seja (pela terceira vez): o escuro não é exatamente uma ausência de algo, é algo. Esse trecho do Agamben faz parte de sua teoria da potência do não. O “não” sendo uma ação tão efetiva quanto aquela que de fato se realiza.

ww-a06

Lembrei disso para fazer o projeto.
Pois, está claro, o poema da Roseana “acaba bem”, no sentido que as crianças aprendem a ver as duas casas ao mesmo tempo, aprendem a perceber que há um “pigmento” do escuro a ligar as duas casas:

 “(…) quando estão numa casa, / também estão na outra”)

ww-a05

 Nas imagens que então fiz, o preto não é apenas o fundo das figuras coloridas. Ele de fato existe. Inclusive, se imiscui nas cores. Isso porque usei tinta a óleo. Essa tinta, grossa, existente, nunca é passiva. Ela nunca esconde o processo de se deitar no papel. Assim, em cada cor, há um preto que antes estava por trás e que, com a pincelada feita sobre ele, se apresenta como ativo, como fazendo parte daquela luz, daquela cor. O preto sobrevive à pincelada, é parte dela.

ww-a04

Além disso – que é algo que diz respeito ao processo, à feitura -, o conteúdo expresso das pinturas também dirá a mesma coisa: o preto nessas figuras não é um vazio, é efetivamente o caminho que liga as duas casas.

É o preto, é sua aceitação como possibilidade, que permite a existência das casas.

ww-a08

*

Elvira Vigna é escritora e desenhista. Formada em literatura pela Universidade de Nancy, na França, é também mestre em comunicação pela UFRJ. Seu mais novo romance, Por escrito, acaba de ser publicado pela Companhia das Letras

Tags: ,