O novo romance de Adriana Armony é, como a autora mesma define, uma alegoria irônica e  tem como cenário uma feira literária. Todos se preparam para sua própria batalha: prestígio, dinheiro, fama, sexo, amor. Enquanto alguns se sentem à vontade nos salões suntuosos, com seus estandes e eventos onde se espalham livros, escritores e leitores da Feira, outros estão deslocados. O livro foi lançado pela editora 7Letras. Leia um capítulo.

A Curadora (geladeira)

* Por Adriana Armony*

Ela recapitulou mais uma vez: dar o tom da Feira, sublinhar as vantagens da mudança de local, explicar o funcionamento das mesas, Cafés Literários e eventos em geral, definir a grade de horários. Seria preciso equilibrar a grita das editoras, e compensar a editora X, que na Feira anterior se sentira lesada, sem provocar ressentimentos ou ameaças veladas de retaliação por parte das demais. Estava no ramo há vários anos, mas a reunião inicial era sempre fonte de stress, uma mistura bem peculiar de euforia e medo, como na estreia de um balé. Sim, era a mesma sensação: ela, magrinha como um fiapo de nuvem, se aquecendo nas coxias com o estômago revirado enquanto o teatro submergia na escuridão anônima de uma multidão pronta a triturá-la ou a salvá-la. Dependia dela, e era inescapável: em breve saberia seu verdadeiro tamanho.

A caminho da cozinha – não conseguiria ficar sem comer nada até a hora marcada para a reunião –, viu de relance sua imagem no espelho do banheiro. Meu Deus, como estava acabada! Tivera a beleza da juventude, e agora que os 50 haviam chegado, estava praticamente extinta. Gordura se acumulava nos quadris e em torno das coxas, denunciando tardiamente seu sangue negro, e as bochechas antes tão vivas se penduravam cada vez mais flácidas. Enquanto isso, a Editora em ascensão brilharia no corpo ainda jovem, ou não tão jovem, mas… preparado. Não era assim que falavam hoje em dia? Fulana é preparada. A Editora era assim, preparada em mais de um sentido. Ah, se a Curadora pudesse preparar tudo como queria… Era a ironia da sua posição: devia dar o tom da Feira, mas vivia entre pressões incontornáveis que a tornavam mais uma boneca manipulável. Restava apenas o falso gostinho do poder: romancistas, poetas, arrivistas de todos os tipos lambendo o chão que ela pisava, rindo das suas piadas, curtindo o seu couro.

Abriu a geladeira e contemplou as brancas entranhas. Dois iogurtes desnatados (prazo de validade vencido), uma metade de cebola (cheiro fétido se espraiando nas prateleiras), destroços de queijo brie, uma pilha de presunto (bordas roxas e ressacadas). Tristeza. Desde que o filho deixara a casa, sua geladeira não conseguira se recuperar. Houvera os amantes eventuais, um breve interregno de uma relação relativamente estável e absolutamente histérica, mas nunca mais o cheiro antecipado do encontro diário, o conforto do arroz-feijão-legumes-salada, os bolos de chocolate nos fins de semana. Tudo passara tão rápido, e agora parecia um sonho. Primeiro a filha, casada antes da hora, substituída pela censura do telefonema protocolar aos domingos, desde o simples toque que parecia dizer: “ligo aos domingos que é quando você não trabalha, ou pelo menos finge que não trabalha”. O tom ausente dos que concedem um favor, dos que cumprem uma obrigação. Depois, o filho bem-amado, ocupado demais com viagens e garotas para se lembrar da mãe. E, no entanto, lá estava ela, pronta a atender a um pedido dele mais uma vez. Pelo menos a garota parecia ter algum talento: escrevera um primeiro romance de um erotismo cool e com referências literárias que poderiam impressionar alguns críticos e ao mesmo tempo ganhar o público jovem.

E, por baixo de tudo, como um zumbido, a presença do marido. Só os mortos tinham direito à imortalidade.

Esticou os dedos e pegou uma fatia grudenta de presunto, que, antes de engolir, tentou sem sucesso enrolar num canudinho. Um copo do resto de suco de caixinha também ajudaria a enganar o estômago. Dane-se que estivesse gorda. Ainda era, e sempre seria, a pioneira, esperta e encantadora Curadora.

Enquanto coloca a roupa – tem de experimentar  peças diferentes, terninhos estouram sob a pressão dos pneus da barriga, o decote em canoa mostra um colo enrugado demais, puta merda, será que teria de fazer uma lipo, uma plástica –, pensa que seria mais feliz se tivesse continuado hippie, plantando alface e maconha, ou se houvesse transformado toda sua experiência lisérgica em arte; não como artista plástica (tinha horror àqueles tipos), mas como artesã de objetos decorativos ou de joias: faria uma pulseira em forma de escorpião cujo preço ultrapassaria de forma indecente o pouco ouro e os minúsculos diamantes incrustados na pele dourada. Conceito por conceito, preferia o mais honestamente desonesto – da literatura de verdade, aquela que tinha orientado suas primeiras escolhas, abrira mão há tempos.

A reunião inicial sempre a tornava pequena e triste antes de, em escala ascendente, alcançar a sua verdadeira idade e vigor. Olhou-se no espelho e lembrou-se da história da Branca de Neve. Uma das experiências mais terrificantes da sua infância era a risada maligna da madrasta: espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu? O disquinho colorido girava, com sua alegria indiferente, enquanto ela, Branca de Neve, explodia em lágrimas. Consultou o relógio: faltavam ainda 40 minutos para a reunião da Associação. Pegaria mal chegar muito adiantada. Felizmente, as mesas estavam praticamente fechadas. Então lembrou que faltava ainda dar um telefonema.

*

Adriana Armony é escritora, doutora em Letras pela UFRJ e professora do Colégio Pedro II. Publicou, pela Editora Record, os romances A fome de Nelson (2005), Judite no país do futuro (2008) e Estranhos no aquário (2012)

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