Não tenho mais como me abrir com minha mãe, ela escuta pouco e quase não se interessa. Por causa da idade avançada, deixou de ser quem era. Para suportar a perda, escrevo a uma interlocutora imaginária, uma interlocutora tão capaz de um amor incondicional.
A escrita é um recurso vital quando a palavra é impossível e, na falta do destinatário desejado, a gente inventa outro. A primeira frase que eu escrevi foi Se eu pudesse… Deixei na gaveta até que o texto se impôs… talvez para me salvar.
Se eu pudesse te dar de novo a vida… fazer você nascer de mim como eu nasci de você… Não paro de desejar o impossível. Apesar dos seus 98 anos, não suporto te perder. Eu, que sei do fim de tudo, não me conformo com o seu fim. De que adiantou ler os budistas e saber que tudo muda, “as causas e as condições variam continuamente”? Que a vida é “fluxo de criação, transformação, extinção e nada permanece”? Sei que só a impermanência possibilita a renovação do universo, porém o coração não acompanha a cabeça.
Acredito que posso curar as suas mãos se eu mesma puser a pomada nos seus dedos, imprimindo neles o meu ritmo. Acredito, embora estejam tomadas por uma micose há anos. Mais parecem as mãos de uma mendiga.
Você, toda encurvada, é mais pobre do que os mais pobres, mais despossuída. A sua esperança de vida é a menor. E, embora você diga e repita que está preparada para morrer, não aceita a morte.
Nunca soube o que era doença. Precisou da velhice para estar “preparada”. Saber que a morte podia te alcançar em qualquer lugar e, portanto, que era preciso estar pronta para ela não bastou. A leitura dos clássicos é insuficiente.
Quando você diz que quer morrer, eu me digo que seria melhor para você não sofrer. No entanto, procuro silenciar o seu voto.
— Quer mesmo um remédio para ir embora? Posso te dar um.
Você me ouve e se cala. Não sei se eu falo para você se calar ou porque não suporto mais ver o que o tempo fez com você… enxergar a ruína em que você se transformou. Já não levanta os pés quando anda, arrasta-os. Segue precedida pela cabeça, por causa da coluna… parece um monolito ambulante. Quando senta, dá a impressão de que não vai mais se levantar.
Isso ora me dá pena, ora me causa horror — o horror do que posso vir a ser. Não sei se a compaixão, que os religiosos preconizam e alcançam, é o resultado de um esforço heroico ou da negação da realidade. Será que eles enxergam o que veem?
Por que você e eu temos que passar por isso tudo? A estranha pergunta do meu filho pequeno hoje ressoa no meu ouvido e faz sentido.
— Com que direito, mãe, você me deu a vida?
Não me ocupo dos cuidados físicos de que você precisa, mas tenho satisfação em ler o que você deseja ouvir. A meio metro de você e bem na sua frente. Para que, vendo os meus lábios e a minha expressão, você entenda o que ouve e o seu rosto se ilumine. Nessa hora, tenho o sentimento de ser poderosa, tanto quanto você foi nos meses em que eu estive no seu ventre e precisava de proteção… no tempo em que eu era apenas uma promessa.
Para suportar a perda, mesmo sem viajar, eu me expatrio. Tomei um vinho do porto e me vi sentada no café mais antigo de Lisboa, o Terreiro do Paço. Me lembrei das arcadas amarelas que circundam a praça, da estátua equestre de bronze com a pátina verde, e desci no cais das colunas, por onde antigamente os monarcas entravam na cidade. Fui descendo os degraus sem pressa, até ouvir o murmúrio do Tejo e olhar o horizonte.
Pouco depois do último trago, a empregada me telefonou, falando da melhora das suas mãos. Soube da eficácia do tratamento que fiz. Mas, paradoxalmente, não me alegrei. A sua dependência não pode me alegrar. Que filha quer ser a mãe da mãe? A pergunta não significa que eu não esteja disposta a “cumprir o meu papel”. Me disponho ao necessário, porém, queira ou não, eu peno — não sou monge nem padre.
Meu dever me exaspera, porque me impõe um luto. Nada foi melhor do que ser sua filha no tempo em que você podia me facilitar a vida. De repente, no entanto, a melhor das mães não pode mais nada. Se quiser me dar um presente em dinheiro, me pede antes para contar as notas da carteira.
— Vê aí quanto tem…
Não recebo o presente sem me dar conta da sua falência e me digo que teria sido melhor não receber nada.
Você hoje chegou em casa sozinha num táxi especial. Tocou a campainha repetidamente, expeditiva, e entrou me chamando e já seduzindo a empregada nova.
— Que menina bonita! De onde foi que você saiu?
— Daqui mesmo.
— Você é bonita porque é jovem. Quantos anos?
— Vinte e quatro.
— A vida pela frente.
— Não sei, não.
— Quantos você me dá ?
— Não sei dizer.
— Pois eu tenho 98.
— Verdade?
— Ana Lúcia está? Sou a mãe dela.
— Um minutinho. Vou já chamar.
Fiquei irritada ao te ver na sala de casa. Será que você não se dá conta de que não pode mais sair desacompanhada? De que você põe a sua vida em risco? Veio de táxi sozinha!
— Da próxima vez que você vier aqui sozinha, eu te mando de volta. Não faz isso de novo!
Você não ligou para o que eu disse e, antes mesmo que eu protestasse, me cobrou com uma pergunta.
— Por que você não foi ao enterro da minha amiga? Telefonei para sua casa e ninguém atendeu. Fiquei o tempo todo sozinha no velório. Você sabia do enterro… o filho dela te avisou.
— Verdade, eu sabia. Não fui, não pude ir. A reunião durou mais do que eu imaginava. Mandei uma carta para o filho da sua amiga.
— E a carta diz o quê? Quero ver se você foi mesmo capaz de consolar o menino.
— “Sei do luto, da tristeza. Mas a sua mãe não deixou de existir porque deixou de viver. Nunca será esquecida.”
Você se satisfez, dizendo-se talvez que eu nunca me esquecerei. Mas a vida será mais fácil depois que você não estiver aqui. Não vou ter medo de que algo de ruim te aconteça.
Ao sair da minha casa, você tropeçou na soleira da porta e só não caiu porque a empregada te segurou. Ainda bem que você a seduziu ao entrar. O tropeço, aliás, nada significou para você, que se aprumou e foi embora. Ou por nem ter se dado conta do tropeço ou por ter tirado de letra.
Não sei bem o que devo pensar do ocorrido. Contei para o meu irmão.
— Por que você não respeita a liberdade da mãe?
— Mas a que liberdade você se refere? À liberdade de tropeçar, cair e se machucar?
Como pode o meu irmão não enxergar a realidade? Não vê que você pode fazer mal a si mesma. Temo, inclusive, que o seu verdadeiro problema seja falta de crítica. Você não percebe que já não tem condições de ir e vir. Ou tem e eu estou enganada? Já caiu inúmeras vezes. Ao sair, pode ser atropelada e, até mesmo, numa cidade como a nossa, sequestrada. Se isso acontecer, como fico eu quando for chamada para te socorrer? Você caída no meio da rua… a perna esmigalhada. Você nas mãos de um sequestrador… Como fico eu, se tiver que negociar com o bandido?
— Alô? O quê? Foi sequestrada? Não é comigo, eu não estou aqui… passe bem.
Você não dá sossego. Só mesmo se eu pudesse te amarrar, e provavelmente nem assim, porque você encontraria um modo de escapar ao meu controle.
*
A mãe eterna, de Betty Milan (editora Record, 144 págs.)