* Por Hugo Almeida *

Um brasileiro atendeu ao pedido feito por Hamlet, pouco antes de morrer, ao amigo Horácio, “o homem mais equilibrado” com quem conviveu. Para quem não se recorda, vão aqui as palavras da personagem de Shakespeare (1564-1616), transcritas pelo argentino-canadense Alberto Manguel (1948) em O leitor como metáfora (Edições Sesc, 2017, tradução de José Geraldo Couto): “Se algum dia me guardaste em teu coração / Afasta-te por um momento da ventura, / E neste mundo cruel extrai dolorosamente seu alento/ Para contar minha história”. O escritor W. J. Solha (1941), paulista de Sorocaba e há décadas radicado em João Pessoa, satisfez o último desejo do príncipe da Dinamarca ao tornar Horácio o narrador de “A angústia de Hamlet”, a mais alentada (170 páginas) e extraordinária novela de História universal da angústia (Bertrand Brasil, 2005).

“Hamlet é como uma esponja”, escreveu o polonês Jan Kott (1914-2001) em Shakespeare, nosso contemporâneo (Cosac & Naify, 2003, tradução de Paulo Neves). “A menos que seja estilizado ou representado como uma antiguidade, ele absorve imediatamente todos os problemas de nosso tempo.” Artista de múltiplos talentos e prêmios – ator (atuou, por exemplo, em O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho), contista, letrista, pintor, poeta, romancista –, grande conhecedor e admirador de Shakespeare (vejam este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=aSvqj9Fi6sk ), W. J. Solha também percebeu que Hamlet e Horácio são nossos contemporâneos.

Ao escrever a novela sob o ponto de vista de Horácio, Solha perpetuou a personagem shakespeariana e fez do anacronismo um tão gigantesco quanto belo e artístico caleidoscópio. “Minha missão, aqui, me apavora. Esclarecer Hamlet?! Seria decifrar… o Homem! E isso é o mesmo que entender sânscrito, uma partitura de Stockhausen [1928-2007], o cálculo que levou Einstein [1879-1955] ao E = mc2. Lembra-se daquele monólito negro que intriga trogloditas e astronautas, em 2001?”

Seu narrador leu não apenas o livro de Kott, como também devorou, “nesses últimos quatrocentos anos (em que tenho dividido a longevidade com Orlando de Virginia Woolf)”, a imensa bibliografia sobre a peça de Shakespeare. “Frequentemente me pergunto: não bastaria, sobre o Príncipe, o grande relato, o voo cego de William Shakespeare?” E em seguida ele mesmo responde: “Não. Absolutamente não. Por quê? Porque lhe faltam certos… pormenores importantes e, como se diz: Deus está nos detalhes”.

São esses detalhes que fazem de “A angústia de Hamlet” um texto fascinante. Artista incansável, culto que só (na boa expressão popular do Nordeste), dotado de uma rede neural privilegiada, Solha não é de usar canga estilística ou temática. Por meio da personagem shakespeariana, ele transita, desenvolto, desde o mais prosaico cotidiano de Hamlet quando estudante e colega de Horácio na Universidade de Wittenberg e da vida contemporânea, atual, bem como pela história da humanidade e da arte (cinema, literatura, música, pintura, teatro etc.), em vários registros literários – ficção, poesia, drama, ensaio. Uma novela de estrutura cambiante, um impressionante vaivém no tempo, nos estilos, nos gêneros, um entra e sai (a peça como guia), instigante aliança que reluz frescor e riqueza do texto, do trágico ao gracioso, enunciações líricas, ricas descrições pictóricas. Narrativa de sabor clássico em vários momentos, como no início, o encontro de Horácio e Hamlet logo após a notícia da morte de Hamlet pai. Um espetáculo a cada página.

Como lembra o crítico canadense Northrop Frye (1912-1991) em Sobre Shakespeare (2ª ed., Edusp, 1999, tradução de Simone Lopes de Mello), o escritor “era um poeta que escrevia peças, mas é mais preciso e menos enganoso dizer que era um dramaturgo que usava sobretudo o verso”. Também poeta que escreve outros gêneros literários, Solha faz exalar poesia na prosa, como neste trecho que sinalizo com travessão a possível mudança dos versos: “Maravilha-me a ideia do Cristo/ que levita na ressurreição, / iluminando pesados lajedos e soldados, / Jesus subindo por trás da árvore escura, / acima do sepulcro/ crivando-a de brilhos em movimento, / projetando a silhueta móvel da copa / nos rochedos em volta”.

Um trecho de prosa simples e bela: “Ofélia aparecia sempre na chácara, talhe delicado de fada, vestidos muito bonitos (apesar do recato com que nos sonegava os seios), voz de um rouco sensual, perfume delicioso, olhar inteligente, simplicidade requintada, ela toda… digna do Príncipe”.

Mais dois, o primeiro pleno de sinestesias; o outro, uma pintura ou cena de filme: “Sozinho, logo em seguida, fumando um de meus cachimbos, vi, pela janela, aquela combinação de silêncio e bosque, charco e bruma, frio e luz…” […] “Uma carruagem leve, descoberta – daquelas chamadas de ‘aranhas’ – distanciava-se na estrada: era Ofélia que se ia, na boleia suspensa entre molas, rodas altas. Fiquei pensando em Hamlet, a roupa um maravilhoso jogo negro de áreas opacas e polidas, metálica nos ombros e joelhos – ele movendo os lábios em silêncio, num canto da Sala do Conselho vazia.” Há muitas e muitas páginas assim, belíssimas. Outras divertidas, instigantes, surpreendentes. O que marca a novela inteira é o rigor da fatura literária.

Machucado em seu orgulho, Horácio revela-se injustiçado na peça (“Shakespeare não tinha nenhuma boa vontade comigo”) e cita como exemplo sua passagem muda na cena 5 do ato IV. “O que faço ali? Nada. Entra Ofélia, enlouquecida pelo duplo choque do assassinato do pai e da truculência e achincalhe do Príncipe, diz uma série de contrassensos prenhes de subentendidos, chega o rei e, quando ela sai, ele me pede: ‘Siga-a de perto. Vige-a bem, por favor’” (Follow her close; give her good watch, I pray you). Horácio se queixa: “É o diabo: Shakespeare me fez tão apagado, na peça, que ninguém jamais se lembra de quem me representou nela ou nas adaptações dela para cinema ou TV”.

Se o dramaturgo não deu importância a Horácio, o amigo de Hamlet sentiu grande alegria ao ler o que crítico norte-americano Harold Bloom [1930-2019] escreveu em Shakespeare: a invenção do humano [2000]: “Em momento algum Hamlet é tão ardente quanto na hora da morte, ao exigir de Horácio que continue vivo para esclarecer toda aquela tragédia”. E também: “Será que Horário compreende algo que nos escapa?”.

De certa forma Horário, que também amava Ofélia, busca protagonismo na novela e rivaliza (teria sido dele que o príncipe ouviu expressões como “palavras, palavras” e “o resto é silêncio) com Hamlet, a quem chega a trair ao descumprir (arrepende-se depois e sente remorso) o juramento de não revelar a visão do espectro, o fantasma do pai assassinado pelo irmão Cláudio, que se casa em seguida com a viúva, Gertrudes, usurpando o trono do príncipe. Mas não é a perda da coroa real que angustia Hamlet. Ele sofre mais com a apressada atitude da mãe. O sonho de Hamlet era ser um grande ator. Horácio vê loucura real em Hamlet ao fingir de louco.

“A genialidade de Shakespeare talvez resida no fato de a peça servir como um espelho. Um Hamlet perfeito seria ao mesmo tempo o Hamlet mais shakespeariano e o mais contemporâneo”, escreve Jan Kott. “O importante é chegar, por intermédio do texto de Shakespeare, à nossa experiência contemporânea, à nossa angústia e à nossa sensibilidade”, afirma.

Solha leva Horácio a desempenhar essa tarefa em “A angústia de Hamlet”. Capital na peça, a questão do ser ou não ser ganha amplos significados. Para o crítico polonês, “ser” significa para Hamlet vingar o pai e matar o rei; “não ser”, renunciar à luta ou, para Northrop Frye, “o conflito entre a consciência e a ação”. Já Alberto Manguel ressalta que Hamlet “foi alertado para as consequências de permitir que o pensamento sobrepujasse a ação”. Se ele não vingasse morte do pai (“essa não presença presente”, na citação de Jacques Derrida, 1930-2004, feita por Manguel), seria mais inútil que o capim das margens do Lete, “o rio do Hades que propicia o esquecimento”. Ou seja, nada.

Na mesma linha, Northrop Frye diz que o monólogo do ser ou não ser é organizado “num fluxo de infinitos, essa misteriosa parte do discurso que não é nem verbo nem substantivo, nem ação nem coisa. Trata-se de uma visão que encara a consciência como uma espécie de vácuo, um nada, no centro do ser”.

O Horácio ganha vida e atualidade na novela de Solha ainda nessa questão crucial da peça: ser ou não ser expressa o controle administrativo mundial – “o crédito implica, dialeticamente, um crédito, num jogo entre Ativo e Passivo, tese e antítese, cujo resultado será sempre a síntese: o lucro ou prejuízo de uma gestão”. O narrador de “A angústia de Hamlet” observa que a obra de arte ideal, de acordo com Da divina proporzione de Pacioli, “não difere… muito… da contabilidade ideal”. E mais: “O Ser ou Não Ser hamletiano é o resultado do perfeito equilíbrio buscado pelo teatro, seu Deve e Haver formal. Senão, vejamos: Shakespeare divide sempre suas obras em cinco atos, como no teatro clássico, e, como no teatro clássico, segue todos os ditames da Seção Áurea, também chamada de Corte de Ouro ou Divina Proporção, concebendo todo o conjunto da criação artística em duas metades, a segunda repetindo a primeira, só que em sentido… inverso”.

Frye chama a atenção para a importância da profunda reflexão, presente na peça, sobre “os paradoxos da ação e da reflexão sobre a ação” para a literatura e a filosofia pós-Shakespeare. “Se Hamlet não existisse, talvez nem tivéssemos tido o movimento romântico ou as obras de Dostoiévski, Nietzsche e Kierkegaard, que a seguem e reelaboram a situação hamletiana em rumos que vão progressivamente se aproximando de nós”.

Aproximação reafirmada e estreitada por Horácio em “A angústia de Hamlet”. Quem é Horácio na versão de W. J. Solha? Um brasileiro, um paraibano. Ele estaria em Wittenberg porque o pai, contrabandista de pau-brasil, usado para tingir tecidos nas cortes europeias, queria que o filho convivesse com nobres… como Hamlet, para divulgar seu produto. O que resta dessa novela de Solha, que merece reedição separada, é um assombro: como pode alguém saber e criar tanto? E tão bem. Coisa de gênio. Um gênio laborioso.

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Hugo Almeida, escritor e jornalista mineiro radicado em São Paulo, é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários e os infantojuvenis Viagem à Lua de canoa, Meu nome é Fogo e Porto Seguro, outra história.

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Ilustração: Hamlet e Horácio no Cemitério, Delacroix

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