* Por Luís Roberto Amabile *
Lucas e Gutão dividem um apartamento e lutam para não cair em depressão. Estão desempregados e passam boa parte do tempo falando de futebol. Relembram as copas. Formulam “teorias”. De vez em quando recebem a visita de Melissa, a irmã de Gutão. O ano é 2005.
1986: A teoria do time bom caráter
Lucas está na sala quando Gutão aparece comendo batata frita com Nutella.
Gutão – Quer?
Lucas – Batata frita com Nutella?
Gutão – Nunca provou? É super bom.
Lucas – (quase com nojo) Não, obrigado.
Gutão – (de boca cheia) Sabe que no fim de semana eu assisti ao Grandes Momentos do Esporte sobre a Copa de 1986.
Lucas – O programa que eu tinha gravado?
Gutão – É.
Lucas – Não vi ainda, deixei para quando tiver insônia, mas tenho dormido bem ultimamente. Você gostou?
Gutão – Gostei. Sabe o que me dei conta? O técnico da seleção na Copa de 86 era o Telê Santana.
Lucas – Grande Telê!
Gutão – O maior técnico do futebol brasileiro até hoje.
Lucas – Você já parou para pensar em como o Telê só montava equipes com jogador bom caráter? Não tinha conversa, para ser titular, além de craque, tinha de ser bom caráter.
Gutão – Os times dele jogavam bonito, futebol-arte, daquele tipo que quase nem existe mais.
Lucas – Pena que em 1986 perdemos aquele jogo contra a França nos pênaltis. O Brasil não merecia, jogou melhor. O Careca ainda fez um a zero no primeiro tempo.
Gutão – Depois a França empatou em uma jogada isolada no segundo tempo. Aí foi para a prorrogação e depois acabamos perdendo nos pênaltis.
Lucas – Podíamos ter ganhado no tempo normal, mas o Zico errou aquele pênalti.
Gutão – Puta bom caráter o Zico também.
Lucas – O Zico merecia melhor sorte na seleção. Ele disputou três Copas e nunca foi campeão.
Gutão – Nem sempre as pessoas conseguem o que merecem, Lucas.
Lucas – Pelo menos o Telê Santana se redimiu.
Gutão – Aquele dois Mundiais de clube com o São Paulo (Olha para a bandeira ou para a flâmula) calaram a boca de todos que o chamavam de pé-frio.
Lucas – (Olha para a bandeira ou para a flâmula que ele têm na parede) 92 e 93. Lembra daquele time?
Gutão – Claro, como ia esquecer? Zetti, Raí, Cafu, Toninho Cerezo.
Lucas – Não falei? Só bom caráter.
Gutão – Só que o Telê morreu no ano passado e não vai mais treinar time nenhum.
Lucas – O tempo passa, Gutão. A Copa de 86 já foi há quase duas décadas. O Telê até já morreu.
Gutão – (imitando um narrador) O tempo passa…Crepúsculo de jogo, torcida brasileira. Fecham-se as cortinas do espetáculo. Grito de gol guardado, zero para todo lado. Viu, eu também podia ser locutor.
Lucas – É, até que leva jeito.
Gutão – Sabe o que pensei? Que em nossa vida o grito de gol também está guardado.
Lucas – E às vezes você sabe que um time se esforça nos treinamentos, faz uma boa partida, pratica um futebol bonito, cria jogadas e mesmo assim a bola não entra. (Toca a campainha, Lucas vai abrir)
Gutão – E o juiz pode roubar também…
Melissa – (entrando) Dava para ouvir do corredor a gritaria de vocês.
Lucas – Estávamos falando de futebol.
Melissa – O de sempre.
Gutão – Bom, tenho de sair. Se vocês quiserem batata frita com Nutella, vou deixar aqui.
Melissa – (estranhando, quase com nojo) Batata frita com Nutella?
Gutão – (como se fosse a coisa mais normal do mundo) É.
Melissa – Não, obrigado.
1982: A teoria de que a derrota na Copa de 82 é equivalente à morte da mãe do Bambi
Melissa – Eu li esses dias uma coluna do Luis Fernando Veríssimo na qual ele diz que pertence a uma geração que nunca se recuperou da morte da mãe do Bambi.
Lucas – A morte da mãe do Bambi?
Melissa – É, lembra? Os caçadores a matam.
Lucas – Lembro. É verdade, foi mesmo muito triste.
Melissa – Sim, mas o filme é antigo, pertence mais à geração dele. Eu fiquei pensando qual era o grande trauma de nossa geração.
Lucas – Para mim é fácil.
Melissa – O quê?
Lucas – A Copa de 82.
Melissa – Puxa, lá vem você outra vez com essa história de futebol.
Lucas – É que a derrota na Copa de 1982 me mostrou pela primeira vez que o mundo não é perfeito.
Melissa – Você e o meu irmão acertaram ao decidirem dividir apartamento. Os dois são pirados.
Lucas – Pode tirar sarro…
Melissa – Lucas, me desculpe, mas não é possível que uma derrota em Copa do Mundo seja tão importante.
Lucas – É como a morte da mãe do Bambi. Não era só um desenho da Disney?
Melissa – Sim, mas…
Lucas – Espera, é sério. Você precisa entender. Imagine um time espetacular, um time que joga bonito, o time perfeito num mundo perfeito. E aí esse time perde.
Melissa – Você é muito complicado.
Lucas – Você se lembra da Copa de 82?
Melissa – Vagamente. Que tal se aproveitássemos que o Gutão saiu e falássemos de outra coisa?
Lucas – Tá, mas deixa só eu te contar. O Brasil era favorito absoluto. Ninguém tinha dúvidas de que o Brasil seria campeão. Mas perdeu da Itália nas quartas de final por 3 a 2, num jogo em que só precisava do empate.
Melissa – Eu nunca acompanhei futebol…
Lucas – O Paolo Rossi marcou os três gols da Itália. Ele fez com o Brasil o que os caçadores fizeram com a mãe do Bambi. Foram três tiros mortais na seleção.
Melissa – Olha, você deveria talvez fazer terapia…
Lucas – É, eu devo ser louco mesmo. Porque por algum motivo naquela Copa eu meti na minha cabeça que se assistisse a todas as partidas, o Brasil nunca ia perder. Era inconcebível o Brasil ficar tomando gols enquanto eu via o jogo. Eu acreditava que tinha esse poder e de repente não tinha. Eu descobri que não era especial.
Melissa – Eu te acho especial. De verdade. Mas é melhor você se resolver. Afinal, até o Bambi se recuperou da morte da mãe.
1994: A teoria de que devemos nos espelhar em Roberto Baggio
Gutão – O que você tem?
Lucas – Não sei, é um sentimento de desânimo que parece que me dói na pele.
Gutão – Ih…Nestes momentos você tem duas opções.
Lucas – E quais?
Gutão – Uma é tomar remédio. Se você quiser, eu te arranjo um dos meus.
Lucas – Para essa minha angústia não adianta esses remédios que você toma.
Gutão – Então resta a segunda opção.
Lucas – Fala logo.
Gutão – Você tem de lembrar do Baggio.
Lucas – O que o Baggio tem a ver com isso?
Gutão – Se lembra da Copa de 94?
Lucas – Claro.
Gutão – Então. A Itália jogava com a Nigéria nas oitavas-de-final…
Lucas – Sei, a Itália quase perdeu esse jogo. A Nigéria ganhava de um a zero até o finalzinho.
Gutão – Até os 44 do segundo tempo. Mas havia Roberto Baggio. A Itália jogava mal, Baggio também. Ele estava meio machucado. Mas ele era craque. E no último minuto ele fez um golaço.
Lucas – A partida foi pra prorrogação.
Gutão – Claro. E o Baggio, mesmo exausto e machucado, fez a jogada que resultou num pênalti a favor da Itália. Então ele cobrou o pênalti e virou o jogo. Meu caro Lucas, quando tudo parece perdido, você tem de ser um Baggio na vida.
Lucas – Ta, mas nesta mesma Copa, o Baggio errou o pênalti decisivo contra o Brasil na final. E aí?
Gutão – E aí que está a beleza da coisa. O destino do herói às vezes é trágico, mas ele cai lutando.
Lucas – Talvez eu seja um herói mais melodramático…
Gutão – Procure o Baggio que existe em você.
Lucas – Sei.
Gutão – Sabe o que ele disse depois que perdeu aquela cobrança fatal? Que mais importante do que converter um pênalti é ter a coragem de cobrá-lo. Isso é lindo, Lucas! E tem mais: você lembra da estréia da Itália na Copa de 98? Foi contra o Chile, e o jogo estava dois a um para os chilenos. O que acontece bem no finalzinho? Um pênalti a favor da Itália. Sabe quem bateu?
Lucas – Eu me lembro.
Gutão – Ele acertou, mas podia errado outra vez. Isso acontece. São coisas que a gente às vezes não controla. Temos de fazer o nosso melhor e torcer para não bater na trave ou o goleiro pegar.
Lucas – Mas se nunca acontecer um pênalti?
Gutão – Acho que vale o mesmo princípio. Porque às vezes você joga bem, faz as jogadas, mas o gol não sai.
Lucas – É, espero que eu ache o Baggio dentro de mim.
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Luís Roberto Amabile é professor de Escrita Criativa e Teoria Literária na PUCRS. É autor de O amor é um lugar estranho (Grua, 2012, finalista do Prêmio Açorianos) e O Livro dos cachorros (Patuá, 2015, vencedor da chamada de publicação do Instituto Estadual do Livro do RS). Também colaborou com Luiz Antonio de Assis Brasil em Escrever ficção, que a Companhia das Letras lançará no início do ano que vem
Na imagem, francês Alain Giresse disputa bola com Sócrates e Elzo, durante o jogo das quartas de final da Copa de 1986.