O Legado Pedagógico de Nicolau Sevcenko

Nicolau

Por Ricardo Bellíssimo *

O sentimento de exclusão que algumas pessoas enfrentam na vida, sobretudo na infância, para depois sublimá-las e delas extrair o sumo de sua genialidade, foi evidente no caso do historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014).

Não à toa, antes de apresentar o programa inicial aos novos alunos nos cursos que administrava na USP – História Contemporânea e História Social da Arte -, o professor Nicolau sempre os advertia sobre seus recorrentes lapsos de dislalia e dislexia, fruto de uma infância rígida em que sua mãe se viu obrigada a amarrar-lhe o braço esquerdo por trás das costas para que assim deixasse de ser canhoto. O canhotismo, afinal, era considerado uma heresia grave na Rússia ortodoxa de seus pais, um pecado demoníaco ante a Igreja e igualmente transgressor perante o Estado.

Para tanto, o professor alertava aos seus alunos: se em algum momento estivesse se referindo ao norte cardeal podia, na realidade, querendo tão somente mencionar o sul. A mesma coisa se sucedia com orientações de cunho geográfico ou político ao falar em esquerda e direita, bem como hemisférios diversos, entre qualquer outra latitude e longitude que então englobavam as suas notórias aulas.

Seu biotipo exótico de russo, ademais, acentuara esse sentimento de exclusão social à medida que os colegas de escola passaram a compará-lo ora a um alemão nazista, ora a um russo comunista. Com o transcurso dos anos, no entanto, toda a demonização do pequeno Nicolau foi brilhantemente superada por uma percepção própria de mundo, vinculada decerto à sua condição de filhos de imigrantes ucranianos que se exilaram no Brasil, refugiados da rebeldia sanguinária bolchevique, e que nunca aprenderam a falar o português.

As consequências desse abominável bullying, que tudo tinha para dizimar a sua autoestima, fortalecera, por outro lado, seu poder de adaptação às adversidades da vida, moldando-lhe um caráter atento e tolerante aos vários estratos sociais, especialmente aos excluídos. E, em particular, artistas contestadores do status quo, e que anos depois lhe serviriam justamente como objeto glorioso a ilustrar suas brilhantes teses.

Percebeu logo que esses artistas de vanguarda canalizavam toda a insatisfação persistente às mudanças prometidas, e jamais efetivadas, pelo capitalismo. A partir desse nicho intelectual, Sevcenko soube compor os primeiros compassos de sua sinfonia historiográfica, na qual haveria de enaltecer a alma que sustenta as mais autênticas manifestações culturais, muitas delas derivadas do anarquismo tais como o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo. E através de sua cordial verve, acabaria por nos deixar outro grande legado: a construção de uma história confiável, porque profundamente agregadora e dinâmica, e em nenhum momento tendenciosa, tampouco ideológica.

Esse mesmo sentimento de insatisfação e exclusão que, revisitado pelo olhar profundamente humanista desse historiador, seria ainda correlacionado aos frutos nefastos de um capitalismo autofágico, exageradamente consumista, posto que vinculado a um projeto de automação e informatização planejados sem qualquer sustentabilidade social.

Somada a essa premissa excludente, adveio o interesse de Sevcenko em amealhar o dinamismo atroz e alucinado das grandes metrópoles ao alicerce central de suas pesquisas empregando dessa vez, e de forma inédita, a tecnologia como fonte propulsora a formar e manipular as mais diversas identidades sociais.

O empenho de Sevcenko, como historiador, caminhava no sentido de primeiramente detectar essas identidades ignoradas para depois desconstruí-las por meio dos efeitos nocivos, ou positivos, da tecnologia na psique dos seres humanos. Para ele, a tecnologia só poderia um dia ser de fato reverenciada à mesma proporção que se insurgisse, em qualquer contexto histórico, como recurso que viabilizasse simultaneamente o crescimento econômico e a inclusão social.

Mestres Históricos

Ao confrontar as teorias de seus mestres como Sergio Buarque de Hollanda, que via a construção da história a partir de elementos contingentes (ou seja, atores históricos que não são propriamente protagonistas mas constroem, por isso, dinâmicas paralelas fundamentais dentro de uma sociedade) à formação marxista de Eric Hobsbawn, que assimilava o mundo contemporâneo fatidicamente submisso à lógica articulada pelo ciclo dominante do capitalismo, Sevcenko, por sua vez, dinamizou visceralmente o estudo da História.

Tendo sempre como base de apoio a tecnologia e de como esta começava a se manifestar na imaginação de grupos excluídos, ele ainda agregou a isso a influência das mais diversas correntes de pensamento culturais e filosóficas, promovendo outro passo enorme às ciências humanas no Brasil.

E, com isso, alavancou-as para muito além de paradigmas acadêmicos até então estabelecidos, não obstante persistisse, em alguns rincões educacionais, a influência de hábitos nefastos remanescentes desde a época da ditadura. E cujas sequelas estendem-se até hoje ao vangloriar o sujeito histórico, materialmente bem-sucedido, pelo olhar reducionista do vencedor e jamais pela ótica do vencido. Uma estratégia pedagógica que, sem dúvida, ainda é manipulada por grupos dominantes para manter operante o seu sistema de privilégios, no qual estão encastelados praticamente desde o período colonial.

Pedagogia Democratizante

A rara genialidade de Nicolau, por tudo isso, jamais poderia restringir-se ao seu já brilhante legado historiográfico.

A revolução pedagógica que esse historiador conseguiu levar à universidade pública, ao pregar a deseducação radical de valores conservadores enquanto aplicava o importante exercício da empatia social em seus alunos, serve como exemplo inequívoco de que um professor, antes de tudo, precisa ser um agente despido de qualquer preconceito. Aberto igualmente a coexistências étnicas e culturais, a fim de educar gentilmente gerações vindouras, e capazes por isso de exercitar a percepção da alteridade com a devido reverência que esta proposta tanto enseja.

Um projeto pedagógico sério exige um amadurecimento social profundo, e que só uma democracia não excludente pode um dia de fato aventar. Educar gerações sem qualquer preconceito foi, por excelência, o maior legado que esse sábio humanista deixou ao nosso país.

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Ricardo Bellíssimo é historiador e escritor, autor dos romances Sufoco e Negro Amor, entre outros

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