* Por Raimundo Neto*

Conheci a escrita da Nathalie no idos de 2006. Por acaso. Zapeei canais cansativos no mundo dos blogs e lá estava ela com Czarina das Quinquilharias. Poeminhas curtos, continhos longos, croniquinhas doces, e sempre criativa, a Czarina. O que era conto, poema e crônica mantinha-se profundo e latejante. As sutilezas das palavras escritas construíam o entendimento de personagens que avançavam da infância para adolescência. Era assim que eu experimentava seus escritos.

O tempo corria acelerado pelos blogs literários e o olhar da Czarina foi tornando-se mais agudo: os olhos cresciam, engoliam o mundo e tudo que existia nele: os amargos incontornáveis de ser gente, tragédias poéticas e cômicas maneiras de ser família, de ser filho e filha, de ser pai e mãe.

A Nathalie escondia o nome do blog Sabedoria do Improviso – esconde-se hoje nas redes sociais como Craudia. Ali não existia o traço da identidade que estampa um rosto. Havia a palavra (muitas) que é suporte para determinar o que se pode vir a ser e, muitas vezes, é suficiente. Depois ela migrou, outro endereço de blog, e ainda sem rosto. As palavras se desenvolviam. Crescer não para subir. Crescer para ser outra. Agora, anos depois, o livro de contos Morri por educação, quando a Czarina abandonou quinquilharias miúdas e partiu para a matança.

Os contos de Morri por educação possuem um ritmo que sustenta o humor, até o leitor perceber que está rindo de uma tragédia. Simples, preciso, nada que produza reverberações profundas no ser, e tudo capaz de instigar incômodos divertidos.

Em “Dentes”, na abertura do livro, a autora cata a dedo palavras que tratam gravidades de forma hilária. Ler sobre o rosto carcomido de uma mulher atingida pela voracidade do gelo, um homem possuído de compaixão e piedade, e rir da cena, é algo que constrange. O leitor é levado até aquele lugar de estranheza e jogado pelo humor ao caos. Para tanto, a mão da autora firma-se segura e constante o suficiente para não deixar o livro se tornar uma sequência de acidentes desgovernados e repletos de feridos. O que Nathalie usa, além das palavras, para alcançar a sutileza de catástrofes tão íntimas? Nathalie conhece as beiradas e os personagens dos contos vivem nos limites do non sense, do inesperado, olhando para o fundo do poço, arremessando uma moeda e esperando o som do fim do poço que nunca chega.

No conto “Mecenas”, uma mulher e sua arte duvidosa exploram a pobreza de um modo ceticamente inesperado, quando banalidades se entrelaçam para definir o futuro de Astrid, a protagonista. Em “Trilho”, o sorriso vem do impensado, quando o que falta em alguém, por drama ou acidente, até um animal quase gente e um tanto adestrado é capaz de preencher. O homem enfrenta a autonomia de um macaco, como quem enfrenta o próprio vício e suas pernas ausentes. O bom humor, em Morri por educação, é um jeito de morrer sem viver despercebido. É assim, conto a conto, desgraça a desgraça, que Nathalie apresenta o aparentemente impossível modo de gargalhar diante do terror.

O livro aprofunda-se em “Inventário de dores”, contornando uma pele delicada que define/separa construções subjetivas vividas pelos personagens e aquilo que é contado fora deles. No conto, uma criança no asilo com a avó no meio de um leito ocupa vazios anunciados com uma falta desconcertada que não sabe dizer-se saudade ou desespero; e essa avó, Herta, conduz mortes em rimas meio pobres meio fundas e constrói inventários de dores, “mapas derramados de solidão” (p. 40), numa velhice entregue, as palavras latentes. A autora confronta a velhice à infância amadurecida da menina que cuida da mãe com uma maternidade enlutada incapaz de caber na mudança de corpo, de cuidado, de presente.

Os personagens criados por Nathalie enxergam, fortes, a dor atravessada em seus caminhos com uma sensibilidade resignada. Em “O Lobo”, uma mulher velha vive dentro de uma lembrança viva de um homem que ergueu uma casa impossível de manter-se em pé. E não tem para onde ir, se o seu barraco for engolido pelas lembranças e desceu morro abaixo. Vigas esmagam o futuro, mas é no presente que o possível da miséria, do caos, da estranheza da margem, da periferia dos sonhos, da solidão dos equívocos, realiza-se em ações que caminham de dentro para fora, descascando sentimentos ressequidos de corações que palpitam implorando para viver um pouco além.

“A arte de correr pegando fogo” é uma dor aberta sem chance alguma de cura. A palavra inicia uma catástrofe íntima, que tem tudo para explodir a página seguinte, mas ela se dissolve, aos poucos, dentro da sordidez de um sadismo refinado.

Se o livro trata de brutalidades inesperadas, alguns contos passam longe da banalidade. Existe, porém, um modo automático e repetido dos narradores finalizarem cada narrativa: uma frase-efeito que amplia e tenta surpresa e revelação. Ainda assim, a vida e seus fragmentos tornam a banal brutalidade uma esquisitice potente que assusta e encanta: os olhos armam-se em fogo e o coração aplaude gritando Bravo!. Nesse conto, o amor só existe para devorar o bem querer, e dentro do peito, uma bomba prestes a ser acionada. Nathalie conduz a escrita sem permitir o estouro da narrativa antes da hora. Acho que a autora escreve com uma dinamite ameaçando a palavra.

Em “Concha”, a narrativa e a perspectiva contadas vêm de um lugar do passado, uma infância e alguns maus tratos, acidentes e premeditações, no entanto, esse recurso não faz da narrativa um conteúdo inocente. Se o passado aparece é para dizer que há crueldade corroendo escolhas desde sempre. É sobre a inocência que não se protege da valentia do mar e afunda. E contar jeitos de morrer sem sacrificar criatividade e surpresas exige competência de Nathalie.

Shangela, a personagem do conto “Transmissão”, é o feminino no corpo de um homem desintegrando-se na composição de uma queda, na composição de uma esperança; é uma quase morte escrita com um corte delicado que deixa o personagem vivo de tanta ternura. É ternura na queda, no afogamento, no corpo em chamas, no corpo soterrado, no suicídio que não deu certo.

Alguns contos mantêm-se distantes do enfado, embora não alcancem o resultado de outros tão potentes, quando, como exemplo, nos contos onde uma experiência mística é transformada em movimento de riso e a busca de um grupo de crianças pela figura paterna e um passado não resolvido levantam a curiosidade do leitor e desviam o ritmo do livro.

Em “Mespesamis”, o tiro certeiro de Nathalie no leitor. Uma perversa inocência conduz uma morte inesperada; entre rir e espantar-se com o resultado causado pela escrita concisa e distanciada, o leitor talvez escolha prosseguir, e encontrar mais armas para ameaçar a compressão do que é bem e mal no sujeito-criança. O leitor chega então a outra adolescência que enfia os pés pelas mãos e goza em potes de shampoo, como no conto “Emoticon de boca aberta”.

Em alguns momentos, Nathalie parece acreditar na graça das catástrofes íntimas; e há um zelo no modo como os temas são apresentados. Os sentidos, ao longo dos contos, são escalpelados com destreza: sente-se a quentura da faca, depois a pele arder, mas parece um abraço e um beijo, e depois o músculo já está exposto, e o sangue vem por último.

O livro fecha-se com um conto que eu chamo de apocalíptico, porque trata do amor materno tentando salvar um possível filho de Satanás: a criança é uma arma capaz do mal só com a existência. Assim, não dá para dizer que é apenas brutal. Algumas linhas despertam compaixão e medo.

Dominar uma narrativa com maestria requer também criatividade e um tipo de talento despretensioso que conduz temas brutos com leveza e displicente envergadura. Construir livros soterrados de relambórios eruditos não necessariamente faz do projeto algo engrandecido de inteligência. Nesse aspecto, Nathalie mantém a palavra simples, parágrafos que não se perdem em distâncias impossíveis para que o leitor entenda a graça do conto. As construções de sentido são diretas e muitas vezes afiadas. E assim, em “Morri por educação”, a escrita de Nathalie continua a escrita da Czarina de idos tempos, adulta, porém.

Está aqui, nesse livro, o bom humor e as sutilezas das desgraças cotidianas, mas Nathalie crescida. Seus olhos cresceram, as palavras ganharam corpo. E crescer na escrita é também poder ser outra, maior e mais cruel. O que Nathalie faz com os contos de Morri por educação é despir a vida humana da seriedade certas vezes entediante; a autora vasculha a graça em banalidades impossíveis de serem descartadas no cotidiano. Nathalie imagina o avesso do que existe na ficção, carrega o exagero até o limite do improvável e entrega uma voz diferente do que foi sua escrita como Czarina das Quinquilharias para se tornar uma mulher ainda da monarquia, da cruel monarquia das mulheres que escrevem armadas.

No final do livro, mantive a impressão de que Nathalie escreve com uma arma em punho.

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Morri por educação, de Nathalie Lourenço (editora Oito e meio, 104 págs.)

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

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Foto de Vanessa Bumbeers

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