Provocações em torno da palavra ‘judiar’

henri_cartier-bresson04

Por Jacques Fux *

Apesar do verbo judiar ser evitado na norma cultura, ao consultar alguns dicionários, encontramos os significados cotidianos e largamente utilizados do verbo: “maltratar, escarnecer, atormentar, zombar.” Ainda aparecem outras referências que merecem ser estudadas: “tratar como antigamente se tratavam os judeus” (Aurélio, 1986) ou “tem uma alma perversa, judia dos animais, judiava dele provocando-lhe ciúmes” (Houaiss, 2001).

O verbo está relacionado à palavra judeu, que também é vista de forma negativa em algumas acepções: “pej. Pessoa usurária, avarenta” (Houaiss, 2001) ou “Indivíduo mau, avarento, usurário” (Aurélio, 1986). Já no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís Câmara Cascudo, encontramos: “Como reminiscência religiosa permanece no espírito popular a figura do judeu como símbolo da malvadez absoluta, alegrando-se com o sofrimento alheio, egoísta, insensível, imperturbável de orgulho (…)” e, citado por Cascudo sobre o Folclore Pernambucano: “Um dia cheio de contrariedade é ‘um dia de judeu’”, ou ainda “Quem cospe em cristão é judeu. Quem promete e falta é judeu.”

Uma das possíveis explicações para tal escárnio seria o mito do Deicídio. Segundo principalmente o Evangelho de São Mateus, os judeus teriam clamado pela morte de Jesus e desejado que a culpa recaísse sobre todos os judeus por toda eternidade. Cito: “Disse-lhes Pilatos: Pois que hei de fazer de Jesus, que se chama o Cristo? Responderam todos: Seja crucificado. O governador lhes disse: Pois que mal tem ele feito? E eles levantaram mais o grito dizendo: Seja crucificado. Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, mas que cada vez era maior o tumulto: mandando vir água, lavou as mãos à vista do povo, dizendo: Eu sou inocente do sangue deste justo. Vós lá vos avinde. E respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós, e sobre nossos filhos.”

Os judeus, após pedirem a execução de Jesus e a libertação do criminoso Barrabás, foram declarados culpados coletivamente e passaram a ser conhecidos, nas acepções religiosas, como maus, deicidas e insensíveis.

Como o verbo judiar soa como uma ação criminosa e condenável, ainda podemos relacioná-lo com a figura de Judas, o traidor de Jesus. Segundo Celso Lafer, ao analisar a obra de Gil Vicente (século XV), “o judeu é um elemento mau, diabólico, associado à ideia de Judas, carregado de pecado e obstinação, e que não apresenta a necessária concordância de dignidades para atingir Deus.”

A visão do judeu avarento, “mão de vaca”, ou seja, a ligação com o fator econômico, é mais simples de se explicar. A Igreja, ao condenar a usura, sentenciaria os judeus a mais uma perseguição.

A pesquisadora Célia Meltnik ainda foi mais a fundo nessas questões ao escrever uma tese sobre as Representações do judeu na cultura Brasileira. Além de discutir os termos judeu e judiar, a doutora em História pela USP trabalha as conotações dos termos judiado, judiação, judaizar. Cito: “O verbo judiar no infinitivo soa como uma ação criminosa, visto que o termo já é uma atribuição de culpa àquele que executa a execrável ação de judiar de alguém. Em oposição, no particípio passado, o resultado é uma inversão total de seu significado na forma infinitiva. Algo ou alguém judiado nos remete à imagem de um ser muito ferido, maltratado, atormentado, ou de um objeto gasto, que foi usado até seus limites, alguém ou algo digno de pena, conduzindo ou facilitando, também, a associação entre o substantivo judeu e a condição de objeto ou vítima da crueldade.”

E: “no Brasil contemporâneo, o estudo do termo judiação apresenta especial interesse. A palavra remete diretamente a acepções. A primeira delas indica grande porção de judeus ou bairro destinado aos judeus, da qual se encontram registros datados do século XVI. Em sua segunda acepção, judiaria indica ato de judiar; maus-tratos, apoquentação. Diretamente associadas à palavra “judiar”, para a qual, por sua vez, encontram-se duas linhas de definição: 1. Escarnecer, mofar, zombar e atormentar; maltratar. 2. Fazer judiaria; fazer sofrer.”

Das muitas explicações, conjecturas e significados das palavras, o que sabemos ao certo é que as palavras carregam histórias, saberes, sabores e, aqui, muito ódio. As palavras também podem ser mastigadas, decifradas, descobertas, segundo o escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Aqui, portanto, ao mastigá-las, desvelamos a sua maldita e preconceituosa conotação.

*

Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias , além do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG*

*

Veja bate-papo de Fux com José Luiz Goldfarb nos vídeos abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=KzGjefzB6ws