Uma ficção existencialista

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Clarice é uma autora de relativo sucesso, que ensina literatura e criação literária na universidade. Feliz, aberta, mãe divorciada de um jovem casal, ambos profissionalmente bem situados. Quando seu médico lhe diz que ela tem um câncer terminal, Clarice escreve para seu filho, Jorge, e sua filha, Marina, e começa a preparar sua partida como se fosse para uma longa viagem. Este é o mote do romance Que Mistério tem Clarice? (editora Biblioteca Azul), de Sergio Abranches. Leia a seguir a entrevista que a agente literária Luciana Villas-Boas fez com o autor.

Por Luciana Villas-Boas *

Como você concilia seu trabalho de cientista político,  pode-se dizer também uma verdadeira militância ambiental, e sua criação literária? Meu trabalho é escrever e, para escrever, ler sem parar. Então, as duas coisas acabam se confundindo ou se completando. Uma boa parte da filosofia que leio para escrever ensaios de política, acaba me servindo, também, para a literatura, a ficção. A questão ambiental é uma atividade basicamente jornalística. Quando vou apurar alguma matéria ou cobrir algum evento, seja para a CBN, seja para publicações com as quais colaboro, e tenho que viajar, essas viagens sempre produzem material humano, geográfico, paisagístico para minha literatura. Por outro lado, situações que imagino como ficção, terminam por suscitar questões que posso tratar como sociólogo ou ensaísta político. Vejo esse fluxo de trabalho como um contínuo.

Se você só tivesse um adjetivo para definir o romance Que mistério tem Clarice?, qual seria esse termo – filosófico, político, existencialista, de mistério? Como melhor definir Clarice em uma palavra ou expressão? Existencialista. Que Mistério tem Clarice é uma ficção existencialista, um mistério existencialista, eu diria. E humanista. Clarice representa o humanismo existencialista, ela expressa a ideia de que nós somos aquilo que fazemos, as escolhas que fazemos. Nós nos construímos como seres humanos e essa é a nossa verdade.

Você conheceu alguém que inspirou o personagem Clarice? Alguém que tenha optado por uma reinvenção pessoal tão radical quanto a dela? Não, Clarice é inteira ficção. Conheci algumas pessoas que sonhavam em mudar radicalmente de vida e se reinventar, mas não tiveram coragem ou oportunidade para isso. Talvez Clarice seja minha resposta para esse desejo insatisfeito que vi em algumas pessoas que conheci, escolher ser quem você realmente deseja ser.

Quem é Clarice? Sem estragar a leitura do romance, é claro. Clarice surgiu de repente e foi paixão à primeira vista. Ela me seduziu com seu amor pela vida e pela literatura, com seu humanismo existencialista radical, com sua sensibilidade social. Eu vivia um momento penoso da minha vida, após um acidente que provocou o descolamento de uma retina e uma cirurgia cujo pós-operatório complicou por causa de uma infecção hospitalar. Fiquei meses sem poder ler. Quando tive alta, Clarice veio me socorrer e eu a concebi como superação e como alguém que ama incondicionalmente a vida e sua família. Ela nasce, também, da revolta e do espanto. E, a partir daí, Clarice se constrói a partir do seu amor por Mário Jorge e, principalmente, do seu amor pelos filhos, Jorge e Marina, e do relacionamento com eles. Ela se reinventa, como autora e como pessoa, a partir de escolhas e decisões reais, nascidas da revolta do espanto e dessas relações afetivas. No romance, ela é inteiramente verdadeira, todavia uma criação da minha ficção.

Você já quis se reinventar completamente? O que pode provocar esse tipo de desejo? Nunca tão radicalmente como Clarice. Mas eu me reinventei várias vezes. Comecei a vida como repórter. Depois me tornei sociólogo e construí uma carreira acadêmica bastante longa. Em seguida, me tornei um consultor, aplicando o instrumental analítico que desenvolvi na vida acadêmica. Depois, retornei ao jornalismo como colunista e comentarista. A literatura é o único fio que liga esses vários “eus”. Escrevo contos e poemas desde os 14 anos. Nunca deixei de escrever, ainda que não buscasse publica-los. Alguns foram publicados, em momentos distintos, desde a época de repórter, até mais recentemente. Os romances eram um projeto antigo, que foram sendo adiados pelas urgências de cada tempo. Agora, dei o tempo a eles. Acho que o desejo de se reinventar nasce da sensação de que uma etapa da existência se completou e ficar nela representaria intolerável estagnação, repetir mais do mesmo. Em outros casos, o sentimento de que se está na trilha errada, que ela vai terminar em um beco sem saída, daí a necessidade de mudar, de se reinventar. É claro que a revolta ou a rebeldia, como dizia Camus, nos fazem rever nossa trajetória existencial.

Com relação à ditadura militar, o que você gostaria que jovens leitores, que não viveram o período, vissem em seu romance? Que não existe a possibilidade de uma intervenção militar que não desande em opressão. Que não existe ditadura militar boa. Ela é sempre violenta, sempre assassinará seus oponentes. A cultura militar é por formação uma cultura do inimigo e o inimigo tem que ser vencido a qualquer custo. Que há um momento em que mandam à favas os escrúpulos e os direitos humanos, matam e torturam para vencer a qualquer custo. Liberdade é como ar, só reconhecemos como é essencial quando não temos. Quem não tem a memória da opressão precisa aprender com quem a sofreu. A opressão transforma a todos, predadores e presas, perseguidores e perseguidos, deixa marcas indeléveis.

Que mistério tem Clarice? é seu segundo romance, mas você tem também muitos contos escritos e publicados. Como você insere esse romance no quadro de sua obra? Que Mistério tem Clarice é meu trabalho mais maduro no campo da ficção. Juntamente com alguns contos, que ainda não foram publicados, nos quais experimento temas e estilos. Clarice, contudo, foi um desafio, não só pelo momento em que o escrevi, mas também porque o centro do romance é a relação entre mãe e filhos. Eu queria que a relação, os sentimentos de Clarice pelos filhos, fossem diferentes dos de um pai. Esses eu conheço de ter vivido. Já a perspectiva da mãe, eu tive que construir passo a passo e acho que consegui. Pelo menos várias mães que o leram me disseram que sim.

Você percebe alguma linha, alguma orientação, na construção de sua obra ficcional? Claramente a ficção me afasta do cientista social na abordagem. Eu faço uma ficção sobre pessoas enquanto indivíduos, não sobre processos ou situações coletivas. O foco é a pessoa humana, seus medos, seus desejos, seus segredos. Ao mesmo tempo, o sociólogo acaba ressurgindo na contextualização dessa vida privada, individual. O drama coletivo dá perspectiva aos dramas pessoais. O outro fio condutor que une toda minha ficção é que ela trata de ideias, além de pessoas. Há sempre uma reflexão existencialista, metafísica, sobre o que somos, o que representamos, as consequências de nossos atos mais cotidianos. A literatura de ficção, a filosofia, estão sempre presentes. É como diz um personagem de Hemingway, que é lembrado em uma passagem de Que Mistério tem Clarice?, a vida da mente, isso é o que importa. Eu diria a vida da mente em relação à vida concreta, às escolhas de vida, às escolhas existenciais. Em Clarice há uma frase que expressa o centro da minha temática: “viver é fazer escolhas, existir é saber escolher”. Escrevo sobre escolhas, para o bem ou para o mal, a maior parte do tempo.

Sua admiração por Guimarães Rosa é muito conhecida. O que há de roseano na sua ficção? Acho que três traços essenciais da minha ficção expressam essa minha ligação muito essencial com Guimarães Rosa. Primeiro, o sentimento sertanejo, de vastidão, que é diferente do sentimento mais fechado do mineiro das serras. Uma certa solidão de estar “nas Gerais”, em um Sertão metafísico, existencial, “o absoluto da solitude”. E essa ficção que trata de pessoas e de ideias. Não por outra razão, cita-se tantas frases de Grande Sertão, como ensinamentos de vida. Viver é perigoso, você sabe. “Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo. Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir até lá? Medo e vergonha.” – diz Riobaldo. Segundo, o existencialismo. Eu vejo Grande Sertão Veredas como um romance existencialista. “Qual é o caminho certo da gente? Nem pra frente nem pra trás: só pra cima. Ou parar curto, quieto. Feito os bichos.” Grande Sertão é sobre escolhas. “O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero, – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!” Terceiro, algo da sintaxe, do vocabulário. Mas me esforço para não mimetizar Guimarães, embora certas formas vocabulares que ele introduziu me pareçam inescapáveis.

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Luciana Villas-Boas é agente literária da VBM Agência e Consultoria Literária