Mercado editorial: a luta de David contra Golias

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Ronaldo Cagiano *

No balanço das leituras de 2014, em meio ao cipoal de contradições, paradoxos e obviedades que marcaram o cenário requentado da produção literária brasileira, chamou-me a atenção a força poética e ficcional que vem das pequenas editoras, sobretudo quando os mais importantes prêmios literários do País vêm reconhecendo qualidade e vigor em autores publicados fora do eixo tradicional do mercado editorial.

Os editores dessas pequenas casas – entre as quais Confraria do Vento, Dobra Idéias, Patuá, Oito e Meio, Scriptum, LetraSelvagem, Móbile, Jovens Escribas, Casarão do Verbo –, apenas para citar alguns exemplos de quixotismo e resistência, vêm trabalhando com afinco e dignidade, sem dever favor algum ao mercado e às diatribes do círculo viciado e vicioso das grandes editoras, para publicar autores de talento e valor estético, cujas obras, inclusive, vêm desbancando pesos pesados da bibliografia nacional, como é o caso, nos últimos anos, de Suzana Montoro, Paula Fábrio, Jacques Fux, Guilherme Gontijo Flores, Everardo Norões, Gastão Cruz, Ana Luísa Escorel, vencedores dos certames pelo valor incontestável de suas obras e não pela blindagem de seus nomes.

As pequenas editoras têm exercido papel fundamental ao dar vez e voz a alguns nomes, tantos deles rejeitados pelo imperdoável silêncio e a indiferença do oligopólio editorial. Este, cada vez mais suscetível às relações sociais e políticas de seus editados do que verdadeiramente movidos pelo interesse na descoberta de valores e novos talentos ou resgate de outros autores que, por uma ou outra razão caíram no anonimato, como faziam no passado um José Olympio e um Ênio Silveira.

Basta ver que o lixo literário vem adquirindo, de forma avassaladora, status de boa literatura no mercado. Exemplo cabal desse nivelamento por baixo é o deboche e a fraude poética de poetas e prosadores de algibeira, que ganham páginas inteiras na grande imprensa, enquanto autores verdadeiramente com tutano criativo são esmagados pela máquina apodrecida do mundo cultural e literário, onde prevalecem hegemonicamente o estrelismo, o narcisismo, a “vida literária” (feiras, patotas, igrejinhas, grupelhos, máfias, gangues, cozinhas, vitrines para todos os gostos, onde são sempre os mesmos os convidados) e não a literatura.

Exemplo deprimente e desalentador desse cenário é o ostracismo a que foi relegado o escritor brasileiro Julio César Monteiro Martins, recentemente falecido na Itália, onde vivia há mais de vinte anos como professor de literatura brasileira na Universidade de Pisa.

As novas gerações, tributárias da literatura de Philip Roth, Paul Auster, Thomas Pynchon, Roberto Bolaño, Coetze, Amós Oz, Enrique Vila-Matas etc e toda a bibliografia internacional imposta goela abaixo pelo acachapante sistema editorial, ignoram solene e despudoradamente um autor como esse, que nos anos 70 e 80 pontificou no cenário editorial brasileiro, além de ter sido proprietário da editora carioca Anima, que traduziu alguns clássicos.

A negligência se generaliza não apenas no meio editorial e na monopolizada rede de livrarias (cujo peculiar espírito comercial apenas vê literatura como negócio, mercado e lucro), mas também entre escritores e críticos os quais não alimentam o mínimo interesse em (re)conhecer o que produziu não apenas um Julio César Monteiro Martins, mas esses que enchem os pulmões em entrevistas para declinarem suas influências (e afluências) e seus créditos a gurus literários estrangeiros, pretensamente alimentando uma dicção que seja absorvida pelas editoras internacionais.

Também desconhecem que no País há tantos escritores completamente alijados não só do mercado, mas das bibliotecas, entre os quais Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Rosário Fusco, Samuel Rawet, Dantas Motta, Ricardo Guilherme Dicke, Geraldo Maciel, José Agrippino de Paula, Renato Pompeu, Ewelson Soares Pinto, Ricardo Ramos, Eugênia Sereno, Orides Fontela, Maura Lopes Cançado, Osman Lins, Dora Ferreira da Silva, Jaime Rodrigues, Antonio Fraga, Lupe Cotrim, Gilka Machado, Joaquim Cardozo, Dyonélio Machado, Moreira Campos etc (a lista da proscrição é grande, entre vivos & mortos) completamente relegados ao anonimato, por culpa e obra de uma cultura literária que avaliza esquemas e panelinhas, alberga o pornô-chic, respalda a modernidade vazia e despótica (porque sem humanismo), aceita a badalação como literatura e rejeitam o que é linguagem e densidade, para incensar a mediocridade, lançar holofotes na estupidez, legitimar modismos. São falsos criadores que vampirizam a vida literária, dissimulados em seus altares mercenários.

Esse fenômeno vem a reboque também de uma banalização geral que se verifica no País nas últimas décadas em todos os setores, em que há uma crescente bestialização das consciências e o rebaixamento da intelligentsia. Um dos mais cabais sintomas dessa pauperização cultural é a massificação provocada pelas duplas de música serta‘nojo’, a proliferação das igrejas evangélicas e sua imoral mercantilização da fé, com seus pastores eletrônicos (verdadeiros estelionatários espirituais no assalto dos dízimos em nome de uma pretensa teologia teoria da prosperidade de um Deus barganhador  e como caixeiros viajantes do pseudo-Paraíso).

Na mesma esteira, o recrudescimento de um pensamento conservador, na política, nos costumes, e na moral, que nos remete e à histérica flatulência do lacerdismo e seus golpistas de plantão que tanto instabilizaram o País nas ondas do passado udenista e hoje revive incólume e sem constrangimento, incorporada nos defensores nazistóides da ditadura, que têm em Jair Bolsonaro, Lobão, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Olavo de Carvalho, Demétrio Manholi, Luiz Felipe Pondé, Marco Antonio Villa – excrescências do pensamento brasileiro contemporâneo – a fina flor do  reacionarismo e da radicalização de um discurso que, incluindo a volta dos militares ao poder, a homofobia, a condenação do aborto, a diminuição da maioridade penal, a instauração da pena de morte e a crítica hepática às conquistas sociais – representa a quintessência do medievalismo, um retorno à barbárie.

Em lúcido artigo publicado na edição nº 816 (16/9/2014) do Observatório da Imprensa, o jornalista Alexandre Coslei enfrenta a questão do camelódromo da literatura, apontando as mazelas desse setor em que escritor e editor se rendem e se vendem cada vez mais ao mercado, num cenário em que não se importam com a qualidade, mas com as cifras e os holofotes. Conclui ele: “Na rendição do escritor às frivolidades do Mercado Editorial é que se dá o encontro entre Fausto e Mefistófeles, é quando a literatura perde a alma.”

A literatura morreu! Julio morreu! Viva a Literatura! Viva a verdadeira criação!
Vivas aos lúcidos e corajosos criadores, que resistem às pancadas e injustiças!
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Ronaldo Cagiano é escritor, reside em São Paulo